sexta-feira, 31 de agosto de 2007

CYPRESS WALK

Em Cypress Walk ou No Fim o Começo o poeta Silva Carvalho (n. 1948) reúne mais três conjuntos de porismas da sua obra porética. Antes de mais, pensando no leitor desprevenido, esclareçamos estes conceitos de porisma e de porética. No n.º9 da revista Nada, em ensaio intitulado O Livro Porético, Silva Carvalho diz ser o porisma uma substituição da palavra poema no contexto da linguagem porética. Esta linguagem materializa-se numa escrita contínua, independente do chamado “momento de inspiração”, espontânea, um «quase impulso», mas longe de se subsumir nos automatismos da escrita automática: «a Linguagem Porética sempre concedeu à linguagem a sua quota-parte de liberdade e o seu estatuto de revelação da inexistência através da irrupção do disparate ou do inarticulado (Estética da Estupidez)» (in Nada n.º 9, p. 55). No entanto, mais que uma entrega da escrita às forças irracionais do corpo, há na linguagem porética uma entrega do corpo às forças da escrita. Resulta este processo numa espécie de escrita diarística, onde vimos confundirem-se vida e escrita, literatura e pensamento, corpo físico e corpo mental. O leitor é colocado na posição inconfortável de quem entra no corpo de um homem através das palavras que esse corpo debita (produz), porque aqui a confusão entre a palavra e quem a enuncia é de tal ordem que, quase sempre, somos levados a não estabelecer entre ambos qualquer tipo de fronteira. Podemos falar desse desconforto imaginando alguém que, pela leitura, é induzido a uma espécie de hipnose que consiste na assumpção de uma existência que, não sendo concreta porque é já palavra, também não se pode dizer que seja metafísica. No fundo, coloca-se assim em questão a ideia de que «toda a linguagem é metafísica», provando que sendo-o, também é uma outra coisa, isto é, o despojamento da experiência física num relato, mais ou menos reflectido, da mesma. Nos três conjuntos de Cypress WalkChamas, Procuras, A Coragem (Como Pressuposto Poético) - somos enviados para o tempo em que o autor foi Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, E.U.A. (1985-89). São porismas escritos entre 19 de Maio de 1986 e 12 de Abril de 1988, marcados por sensações dolorosas, de sofrimento e de tristeza, que se resolvem em dois planos distintos: um esvaziamento obstinado e obsessivo das expectativas - «Tudo se escreve e inscreve na página branca / do livro que nos é: pena que ninguém saiba ler / o mistério que se esconde no nosso corpo!» (p.57); «E porque a experiência é minha e única, / compreendo muito bem que não tenha leitores.» (p. 153); «ler-me, / às vezes, é tão penoso que compreendo muito / bem por que não tenho leitores» (p. 220) –, a afirmação da coragem enquanto tábua de salvação de um homem cuja vida se confunde com ir «escrevivendo». Esta coragem é pois tanto um pressuposto poético como um pressuposto para a vida: «Conheço na carne a ambiguidade, fi-la estética / como qualquer um outro, não é um estádio avançado / da consciência humana, é o preço que se paga, / que se tem que pagar, quando se ousa o desconhecido» (p. 189). Desengane-se, porém, o leitor que julgar esta porética sob o prisma dos julgamentos amiúde praticados sobre uma qualquer poética. Neste caso, a predisposição do leitor terá de ser outra. Ele encontrará olhares sobre o mundo de fora (televisão, consumo, carro, mulher, filha, referências a canções, escritores, situações de trabalho – «A pedido de sua viúva revejo provas / da Poesia I de Sena») servindo de pretexto para o porisma, monstruoso corpo, metade poema, outra metade sofisma, onde a rotina da vida adquire um reflexo, quase como se o porisma fosse um espelho de um momento, de um instante, que é aquele em que as palavras surdem desse lugar obscuro e desconhecido do corpo escrevente. No primeiro dos conjuntos há palavras grafadas em maiúscula, com destaque para a palavra Nada. A epígrafe de Robert Lowell - «Only a nihilist desires the world / to be as i tis, or much more passable.» - apenas induz o que o autor confirma.

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