sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O POETA NU

É sempre com enorme prazer que regresso à poesia de Jorge Sousa Braga (n. 1957), médico de profissão que nunca enjeitou a terapêutica do humor nos seus poemas. Não posso, porém, deixar passar em claro algumas inquietações enquanto leitor. Não é a primeira vez que o poeta reúne o seu trabalho sob o título, já de si irónico, O Poeta Nu. A primeira edição data de 1991, com o selo da Fenda, onde à época foram reunidas as cinco primeiras colectâneas do autor. Acrescentam-se agora todos os títulos dados à estampa posteriormente, à excepção de Herbário (1999), volume distinguido com o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens. Desde logo não se entende esta ausência, dado tratar-se de um dos melhores livros de Jorge Sousa Braga. Também se aceita com dificuldade a absoluta omissão de qualquer tipo de referência às datas de primeira edição dos títulos reunidos, assim como a inexistência de uma nota biobibliográfica, por breve que fosse, que, não acrescentando nada aos poemas, permitiria ao leitor um outro enquadramento. Em O Poeta Nu a poesia quer-se fazer valer por si própria e nada mais - o que se entende, não se lamenta, mas não pode impedir-nos de apontar as lacunas que consideramos criticáveis neste género de volume. É importante saber, por exemplo, que além de poeta e médico – actividade evocada no livro A Ferida Aberta (2001) – Jorge Sousa Braga tem sido tradutor de, entre outros, alguns autores orientais (Matsu Bashô, Li Po, etc.), assim como incansável antologiador (Qual é a minha ou a tua língua – Cem Poemas de Amor de Outras Línguas, Os Cinquenta Poemas do Amor Furtivo e Outros Poemas Eróticos da Índia Antiga, Animal Animal – Um Bestiário Poético, O Vinho e as Rosas – Antologia de Poemas Sobre a Embriaguez). Tal actividade, se, por si só, nada explica, permite compreender melhor algumas das inclinações da poesia do autor de Fogo Sobre Fogo (1998) – notável volume de haikus, explicados, pelo próprio autor, da seguinte forma: «Os poemas que se seguem pretendem aproximar-se da simplicidade (ilusória) de uma gota de água. Interrogo-me, por vezes, quantas palavras poderá conter uma gota de água» (p. 169)? Um exemplo: «Vou ao céu / E venho- / -me» (p. 179). À simplicidade e ao erotismo destes brevíssimos momentos poéticos, acrescem a ironia, uma toada (por vezes) satírica, o culto do poema em prosa, a provocação assumida no título inicial De Manhã Vamos Todos Acordar Com Uma Pérola No Cu (1981), apresentado por João Luís Barreto Guimarães como «uma abordagem da temática dos Descobrimentos e da portugalidade sempre tomada pelo lado irónico e surrealista, com ressonâncias do movimento Beat, de São Francisco». Já dissemos da ironia e do erotismo, da influência oriental e do gosto pela provocação. Reforcemos a vertente narrativa. A Greve dos Controladores de Voo (1984) é um desses livros que, sem pejo, poderíamos hoje classificar de micronarrativos. O tom geralmente humorístico glosa a notícia, o texto jornalístico, recria historietas que encontram paralelo, em Portugal, apenas em alguns momentos das obras de Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly: «Era quase tão bela como a Vénus de Milo. Um dia cortou os braços a sangue frio» (p. 36). O trocadilho, o cómico, o absurdo, o surreal, fundam-se aqui numa satirizarão pertinente da realidade. Poucos encontrarão poesia nestes textos. Falarão de criatividade e comicidade, sublinharão a capacidade inventiva do autor, mas recusarão reconhecer-lhes poesia. Ora, não havendo, desde há muito, critério outro para a definição de poesia senão aquele que se define pelo gosto, pela abertura, pela predisposição, pelo desprendimento e pela cultura do leitor, poderá alguém impedir que um texto que nasce por/para ser poético não o seja? O burlesco, o cómico, a sátira, a ironia, o prosaico, também têm a sua tradição poética. Isso ninguém pode negar. O resto, que o digam as Víboras: «As víboras têm um medalhão de escamas doiradas no ventre. As restantes escamas são negras. Os dentes inoculadores… (Alguém disse que os poetas eram pintores cegos. Eu diria que os poetas são pintores a quem arrancaram os olhos!)» (p. 122)

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