Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004) é um dos poetas portugueses mais injustamente esquecidos. Foi assim em vida, ameaça sê-lo na morte. Não desapareceu há muito, na sequência de suicídio, mas impõe-se que, tanto quanto nos for possível, não permitamos que a sua obra resvale no esquecimento absoluto. Algumas das suas melhores colectâneas de poesia foram editadas na &etc por Vítor Silva Tavares, que sobre ele escreveu, na segunda edição da revista Telhados de Vidro (Maio de 2004), uma comovida e comovente evocação. Destaco, a propósito do que pretendo aqui lembrar, as seguintes linhas: «Homem de palavras públicas, direccionava-se o seu trabalho ao corpo social, abstracto está bem. Mas a imprensa escrita, o que nela se “fixa” em papel, tem vida curta, breve fenece a embrulhar castanhas – e os livros de crónicas e poemas são lidos, quando são e se é que entendidos, amados, por um número reduzido de pessoas – amigos, conhecidos, pouco mais» (p. 90). Serei eu um desse pouco mais, há tempos atraído por uma capa que escondia no seu interior uma surpreendente colecção de crónicas. Fui achado pelo livro numa feira de velharias, onde o adquiri pela módica quantia de 1€. Não é vergonha dizê-lo, muito se encontra pela módica quantia de 1€ nas feiras de velharias deste país. Na primeira página, uma dedicatória. Certamente a uma amiga, dado o tom. Às páginas 37, uma emenda, muito provavelmente pela esferográfica do autor. Comprar livros em segunda mão tem destas coisas, trazemos à mão a mão daqueles que admiramos. O Revólver do Repórter, assim se chama o livro, por serem as palavras - «frágil rastilho, mas que por vezes incendeia e faz arder» (p. 178) - a arma de quem escreve, de quem faz da escrita um «ofício aciganado» (p. 73). Ciganos andam dentro destas páginas, povoadas de personagens de carne e osso, histórias de um país corrido de Espinho ao Algarve, figuras pícaras daquilo a que alguns gostam de chamar o Portugal profundo, ou seja, o país sem fundo. Os lugares são os de Lisboa, maioritariamente, mas também a província de Campo Maior, Abrantes, Oeste e Ribatejo, Algarve, um certo Porto. A melhor definição de Lisboa que alguma vez li aparece a páginas 166: «Lisboa é uma ilha onde batem com força as marés da província». É nestas marés que singra o repórter, «amador da boeminha» (p. 11), naufragando em tabernas, bares, balcões de cafés, cabarés, tascas, entre os comes e os bebes onde se caçam, além dos acepipes que vêm no prato, as personagens de quem opta por uma escrita pautada pelas ruas do corpo. Não é Eduardo Guerra Carneiro cronista de cogitações rendilhadas, nem repórter de sociais de pacotilha. Não foge à farpa, lembrando «certos amigos de então que começaram por ser «incendiários» e acabaram «bombeiros»» (p. 22) e demarcando muito bem o seu território, centrado na primeira pessoa do singular, onde o outro é sempre pretexto para falar de si próprio, «marginal a grupos de pressões e a partidos, ferozmente independente» (p. 47). Falar de si próprio como quem dança com os outros, com esses que andam nas ruelas calcorreadas, afogando nas tabernas o que também nós por lá afogamos. Só depois vêm as literaturas, já filtradas pelo olhar de quem gosta de olhar para fora. Há que ver para escrever, há que experimentar e sentir. A palavra é só um eco das sensações, um porto onde atracam frases naufragantes. Fala-se com ternura dos outros, tanto como se fala ternamente de um novo livro do pai. Fala-se de Barthes, Rimbaud, Baptista-Bastos, Luiz Pacheco, no mesmo tom em que se fala dos camones nos bares do Cais do Sodré, de anónimos que são notícia por tristes acasos, de ciganitas e da Dona Alice do Arroz Doce. São crónicas da vagabundagem, publicadas nos diversos espaços da imprensa portuguesa onde a pena de Eduardo Guerra Carneiro foi pousando: do Se7e ao Diário Popular, da Match Magazine à Agenda Cultural da Câmara de Lisboa. Foram publicadas na Teorema, em 1994. Se tiverem a sorte que eu tive, não hesitem. Já ninguém escreve assim na imprensa portuguesa. A escrita agora é de escritório. E pouco mais.
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