sexta-feira, 24 de agosto de 2007

SENHOR FANTASMA

Numa das badanas de Senhor Fantasma informa-se ser esta colectânea parte de uma ««trilogia» autobiográfica sobre o passado e a memória, que inclui Em Memória (Gótica, 2000) e Vida Oculta (Relógio d’Água, 2004)». A metáfora clássica do fantasma, podendo ser entendida de múltiplas maneiras, como qualquer metáfora, adquire aqui o sentido que já lhe entrevíamos num dos poemas finais de Em Memória. Refiro-me a Fantasmas, cuja citação não será displicente: «Todas as casas têm fantasmas. / As casas velhas têm fantasmas velhos / e os fantasmas dos mortos são os vivos» (p. 106). Já em Vida Oculta o fantasma também aparece, nomeadamente em poema homónimo do livro agora editado: «Eu sou um fantasma e assombro-me. / Os fantasmas não têm sombra, são assombrados / por outros fantasmas, assombram-se / e não se conhecem» (p. 31). Este elo de ligação entre os três volumes, consolidado na colectânea mais recente, permite-nos pensar a figura do fantasma, evocação cesarinyana, não apenas como vem apresentada na supracitada nota de badana - «O fantasma é o passado, a fantasia, a inspiração, mas também uma espécie de figura irónica que está acima das altas angústias e das pobres pretensões do sujeito.» -, na qual se referem ainda a «acepção de «demónios» (íntimos)» e a própria essência da literatura (a este respeito, ler Teoria do Fantasma – o efeito Cronenberg em poesia, de Fernando Guerreiro, in Italian Shoes, Vendaval, 2005). Além destas significações, há a considerar a do fantasma enquanto grilhão ético e estético anterior às próprias acções. Neste sentido, o fantasma não é um retorno do passado, nem o corpo possível de uma arte cuja natureza consiste em cristalizar, pela palavra, sensações, memórias e ideias. O fantasma é antes um eco que se projecta no futuro, em relação com os dados do passado, com as memórias, com as vivências do presente, mas já construção de um eu que nos ditará num tempo que ainda não experimentámos. É também o nosso reflexo num espelho em permanente construção, a dissimulação do que somos na forma como nos apresentamos ao olhar dos outros, na forma como os outros, nossos espelhos, nos reflectem. O melhor poema de Senhor Fantasma, com título roubado a filme de Joseph L. Mankiewicz, é o único onde, de alguma maneira, encontramos explícita essa ideia do fantasma «que vai ditando, com todas as letras, a sua narrativa» (p. 12). Por isso mesmo é o melhor de cinco conjuntos algo desiguais, como resulta ser sempre a poesia de Pedro Mexia (n. 1972) - mais desinteressante quando opta por processos multirreferenciais já saturados e entediantes (evocam-se cantautores, poetas, cineastas, poemas, filmes, sem grandes razões que o justifiquem). Por vezes é também uma poesia, dada a sua componente prosaica e irónica, que arrisca ser engraçada quando, provavelmente, não o pretende e não ter graça alguma quando, aparentemente, é essa a sua intenção. Podia dar vários exemplos, mas fico-me por este epigramático NESSUN DORMA: «De madrugada não vencerei» (p. 67). Entre o minimalismo de alguns poemas e a maior inspiração de outros, sublinha-se a capacidade de risco e o destemor perante a sensação de nulidade. Destaco um certo pessimismo relativo a valores clássicos como sejam os do amor e da amizade, quase sempre subsumidos na sombra dos enganos e das traições, de uma esperança inútil e desiludida. O tal fantasma do futuro que há pouco mencionava, adquire nesta sensação de uma esperança absurda uma consistência bastante forte. A esperança pode, de facto, equivaler a um fantasma, uma assombração, que sabemos inútil e absurda mas que não logramos esvaziar diante da ameaça do futuro. Belo, pelo menos tanto quanto terrivelmente derrotista, é, a este título, o poema-aforismo da página 24: «A esperança entre as urtigas / quanto mais crescer mais será / rasgada». Mas, quanto a mim, os melhores poemas deste livro são alguns dos que se organizam sob a forma de retratos ínfimos da vida doméstica, das relações interpessoais e da modernidade. A palavra solidão adquire nesses poemas um sentido algo inusitado, que é o de uma espécie de ser desfocado, sempre dessincronizado com o mundo e com os outros que o rodeiam, «dividido / esmagado / pela mó dos moinhos» (p. 71). Em suma, Senhor Fantasma foi, desta trilogia, o volume que menos apreciei. Não é mau, mas também não me parece bom. É apenas mais um livro de poemas de Pedro Mexia.

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