quarta-feira, 19 de setembro de 2007

BARCELONA

Regresso a Barcelona passados nove anos. As memórias que trago não são memórias, são meras impressões que não pretendo reavivar. Quando escapo do fogo em que vivo prefiro o contrafogo do encontro com o desconhecido à frigorífica tentação de um mero reencontro com o passado. Acomodo-me numa pensão na Hospital, em quarto precavidamente reservado pelo camarada VV. Barata, tanto quanto dormitório eleito pela blattaria, com a vantagem de ser central e muito escassamente frequentada pela fauna turística. A Pensão Tarrason, nos seus seis andares de quartos minúsculos, lençóis rasgados e paredes fendidas, parece-me maioritariamente habitada por imigrantes sul-americanos, paquistaneses e magrebinos. No andar onde fomos acomodados há um velho que passa o tempo todo a escarrar e um bebé que chora, quase sempre em sintonia com as escarradelas do velho. Estamos em pleno Raval, bairro de putas africanas, imigrantes e boémios, de uma intensa actividade nocturna que inclui bares, pequenas lojas de cultura popular, tatuagens, discos em segunda mão, uma ou outra livraria, corte e costura de punks, góticos e sabe-se lá mais o quê. Por coincidência, ao comprar o El País encontro num dos suplementos uma reportagem sobre o pouso que ora vos descrevo: «El Raval es lo que siempre se había llamado el barrio chino. Un barrio al que la vida y la literatura dieron fama de canalla. En el Raval hay plazas que recuerdan a escritores como Jean Genet, y en Casa Leopoldo – lugar de reposo obligado de Pepe Carvalho -, una foto recuerda que en una de sus mesas André Pieyre de Mandiargues escribió el libro (La Marge) que dio fama literária al barrio».

Do lado oposto ao Raval, quem atravesse a Rambla encontrará o outro grande bairro da chamada Cidade Velha. É subindo e descendo a Rambla, perdendo-se no labirinto de ruas do Bairro Gótico, estacionando na Praça Real, que o corpo absorve o que de mais impressionante Barcelona tem para oferecer: o movimento, as ruas interminavelmente repletas de gente, os artistas de rua, homens estátua, poetas, músicos, pintores, putas, muitas putas. Mas o que mais fascina neste movimento todo, a mim que sou da paz e do sossego campestres, é precisamente o facto desse mesmo movimento não conseguir alienar a dimensão picaresca dos autóctones, espalhados por centenas de tascas onde bebem cerveja, picam umas tapas e metem a conversa em dia. Os turistas são muitos, imensos, mas não espantam os velhos que jogam uma partida de xadrez sentados nas muradas de pedra da Praça Catalunha. Depois há essa peculiar idiossincrasia das ruas, das avenidas e das praças de Barcelona: para onde quer que olhemos a arte espreita-nos. Seja uma escultura de Rebecca Horn em plena praia, poemas urbanos de Joan Brossa, um mosaico de Miró à entrada da Rambla, a fachada de um dos muitos edifícios de Gaudí ou um gato de Botero no Raval, é a arte quem nos espreita na cidade de Barcelona. Entramos numa outra dimensão, não a dimensão daquele que contempla mas a de quem é contemplado. É isto que gera uma relação natural e espontânea entre os transeuntes e a arte, retirando a esta o pedestal onde geralmente se encontra, colocando-a ao nível do homem quotidiano. Nas ruas de Barcelona não se respira arte, é-se respirado pela arte.

Por falar em arte, uma visita à exposição permanente do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona só nos deixará mais orgulhosos da Colecção Berardo e de Serralves. Safam-se os vídeos de Vito Acconci e Bruce Nauman. No Museu Picasso, onde tinha estado há nove anos, não voltei a entrar. Vale a pena visitar o edifício, mas as grandes obras do autor de Guernica não estão ali. Infelizmente ainda não foi desta que visitei a Fundação Joan Miró. Na segunda-feira, quando fui namorar para o Parque de Montjuïc, estava fechada. Em contrapartida, reencontrei-me com os trabalhos de Antoni Tàpies no belo edifício da fundação que lhe é dedicada. Outra fundação que visitei foi a que leva o nome de Joan Brossa, projecto humilde que vale a pena visitar pela mostra considerável que aí encontramos de poemas objecto e de poemas visuais. Comprei por lá um livrinho que é uma pequena maravilha. No entanto, Barcelona é Gaudí. E Gaudí é o Papa de Barcelona. Essa obra monumental que é o Templo da Sagrada Família deixa-nos sem fôlego. Sair do Metro, olhar para trás e ser invadido pela monumentalidade daquelas torres cravadas de figuras é sempre uma experiência marcante. Navegar nas linhas sinuosas da Casa Milà, perder a vista nas fachadas das Casas Batlló e Amatller, imbui-nos de uma vontade burguesa que chega a ser confrangedora. Diga-se o que se disser Gaudí foi um génio, nele confluem géneros, imaginários, planos obscuros que nos situam entre o pragmatismo do real e as megalomanias do onírico. Garanto-vos que dá mais tesão que o Museu de l’Eròtica, a bem dizer um amontoado de imagens pouco mais que insonsas e falos vários para práticas, pela parte que me toca, muito pouco atractivas.

À noite, todos os caminhos vão dar à Cidade Velha. Entre o Bairro Gótico e o Raval, separados pela Rambla, passando pela Praça Real, são muitos os bares, as propostas, as alternativas. Após jantarada com o VV, seguimos para um tal de Manchester. Música a condizer, muita cerveja, boa conversa. Na Praça Real reencontrei-me com o Pipa Club, um bar escondido num segundo andar, decorado com motivos todos eles relacionados com a arte da cachimbada. Há uma exposição considerável de cachimbos, especialmente interessante para quem, como eu, embora em modesta performance, aprecia "o fumo das chaleiras". Sherlock Holmes dançando ao som do acid jazz. Já na ressaca da noite, um reencontro inesperado. Contava à Ana de um bar onde havia estado há 9 anos, quando, para meu espanto, olho para o lado direito e dou com aquele letreiro tão familiar do Nostromo. Parece que o tempo tinha parado por ali. Atrás do balcão, o mesmo Cecilio Pineda. Velho marinheiro dos sete costados, amigo de portugueses, fumador inveterado, Cecilio Pineda Rodríguez também pratica a arte do verso e da pequena história. Comprei-lhe uma colectânea de poemas, bem ilustrados e ilustrativos das aventuras deste navegador:

SHANTY PORTUGUÉS

Para marinheiros nós,
depois
os nossos irmaos
os ingleses.
E muito muito
depois
os filhos da puta
dos espanhois
que aprenderam
de nós.

Ciudad Blanca, 1973.

Já que estamos com a mão nos livros, algumas aquisições. Na Livraria Central, sita em pleno Raval, uma boa antologia de poemas de Nicanor Parra, o número mais antigo que encontrei de El Naufraguito – deliciosa microrrevista caseira de humor e de provocação - e um livro de micronarrativas, Falsificaciones, de Marco Denevi. Atenção aos interessados: este livro está publicado numa editora que possui uma colecção, microMundos, só de micronarrativas. Trata-se das Edições Thule. Já da Casa del Llibre, na Gràcia, trouxe um livro de estórias de José María Merino. Eu não disse que regressaria mais falido?

Sem comentários: