quarta-feira, 5 de setembro de 2007

DA SOMBRA QUE SOMOS

Na sua mais recente recolha de poesia, publicada pela Deriva Editores, Maria Sofia Magalhães (n. 1961) interpela-nos no contexto daquilo a que poderíamos chamar uma ontologia poética cujo fim é já o princípio enunciado no título: Da Sombra Que Somos. Essa sombra que somos percorre os poemas deste volume, organizados em duas partes complementares. Na primeira, intitulada Sem forma (…), a sombra mostra-se implícita em cinco poemas breves que introduzem, de modo elíptico, o desenvolvido nos quarenta e quatro poemas da segunda parte, intitulada (…) De infinito. Assim reunidos – curioso que no índice não se explicite a divisão -, os cerca de cinquenta poemas deste volume poderiam assumir como subtítulo os títulos das duas partes: sem forma de infinito. É com esta condição de finitude que somos confrontados logo nos primeiros cinco poemas, remetendo-nos a autora para um «último acto», «o instante fatal», ainda que encoberto por um discurso próximo de certa lírica amorosa mais convencional. Revelam-se estes poemas poemas de solidão, amor e morte, trindade clássica que aqui não encontra outra novidade que não seja a voz muito própria de quem a explora. O poema, dito assim no seu âmago, é um «espelho» que ameaça desnudar a alma, pôr a claro as fragilidades do corpo, lançar luz sobre a sombra que somos. No fundo, o poema ilumina, amiúde, a sombra. Essa luminosidade concretiza-se, neste caso, numa poesia límpida, breve, sem pudor de uma simplicidade rítmica resolvida, a espaços, em rimas algo banais, suave como as partículas invisíveis de que somos feitos. Lembro-me de Carlos de Oliveira, mas logo esta lembrança é suspensa pelos gestos e pelos rituais de quem vive na cidade. É neste espaço urbano, em contraste com as falas da natureza (nomeadamente a chuva), que Maria Sofia Magalhães olha o outro: «Olho sem perceber / que o rosto que me olha / sem me ver / é o outro lado do espelho / de viver» (p. 18). E subitamente é o leitor lançado na dúvida. O cenário urbano é também o cenário das comunicações impossíveis, dos medos, da desigualdade. Há como que uma desordem na simplicidade destes poemas a desproteger o leitor, a desarmá-lo, a indiciar-lhe outros caminhos que não apenas os do sonho e do real. Serão esses os caminhos da sombra? A luz do poema fica assim ameaçada: «Deixei que as palavras se soldassem / em blocos incompreensíveis de sons. / Abro a boca e soltam-se ramos, / secos, partidos, sem flores. // Rabisco as letras / mas fogem os dedos nas sombras. / Restam os olhos e o olhar / para que ardam, que queimem, / que sintam» (p. 21). É esta uma poesia muito mais interrogativa que aforística, embora por vezes não resista às suas certezas. Mas essas certezas são as dos lugares ambíguos, como a sombra, porque é nessa ambiguidade que vivemos, crescemos e morreremos. Assumem-se «o desarrumo, o desaprumo, o desnorte», o desequilíbrio, apetecendo dizer que poesia que não assuma esses desequilíbrios, mais ainda que os promova, provoque e exalte, não poderá chamar-se de poesia. Deste modo, o que o poema espelha nada mais é senão essa ambiguidade de que somos feitos, a pele ressoando a velhice e o desejo, a chuva cobrindo a cidade de melancolia, o amor alternando com o medo, com as feridas, com as nódoas que trazemos dentro, com a náusea que o mundo nos impinge. E se o poema lança luz sobre essas sombras, a natureza é o refúgio que nos resta: «Apesar de tudo / temos o céu azul / e as árvores a chover folhas / castanhas e verdes. / Ouvimos os sons da vida / e, de manhã, / continuamos a respirar» (p. 31). Apesar de tudo, temos «a luz do sol». A alma solta-se no poema. A poesia deste livro, ainda que possa parecer, não é uma poesia superficial. Antes pelo contrário, é uma poesia das raízes. É uma poesia do que se esconde por detrás das lanças que, à superfície dos dias, nos abrem feridas no corpo e deixam cicatrizes. Porém, não distingamos aqui o corpo da alma. Que a alma mais não seja do que o corpo embalando no poema essas feridas sem forma de infinito, nesta vida que, como dizia outro poeta, é estar à morte.

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