sexta-feira, 21 de setembro de 2007

NENHUMA PALAVRA NOS SALVA

A pena de Rute Mota (n. 1980) pousa leve sobre a página, é cuidadosa ao rasgar o branco da folha, não procura tanto a ferida como parece procurar um certo silêncio que, paradoxo inexorável, acaba sempre traído pelo ruído da palavra. Daí o título Nenhuma Palavra Nos Salva me pareça tão congruente com a escrita praticada neste pequeno volume como instigador de algumas dúvidas sobre as quais sabe bem especular. Afinal, nenhuma palavra nos salva de quê? De que precisamos ser salvos? Qual o sentido que a salvação assume num contexto poético? O que é a salvação? Estaremos irremediavelmente condenados, como dizia o Camus de A Queda, a uma inocência apenas justificável pela infelicidade? Teremos nós perdido "a luz, as manhãs, a santa inocência daquele que se perdoa a si mesmo"? Talvez o plano em que a questão aqui deva ser colocada não seja o plano existencial, talvez a palavra que não nos salva remeta antes para um (des)equilíbrio mais peculiar, afecto ao sujeito poético, às angústias do sujeito poético, às suas necessidades e fragilidades singulares. Neste sentido, há palavras que se impõem mais que as outras nos quatro conjuntos que compõem o livro de Rute Mota. No primeiro, com o título Um lugar na incerteza, é a palavra amor que nos surge mais evidenciada. «Vou erguer o meu amor do nada / e cantá-lo ainda assim / - não há coisa mais cantável / que o que do nada vem» (p. 8) – diz a autora. Mas este amor não é um amor concretizado, é um amor que se esconde por detrás de jogos de palavras onde ecoa a solidão, é um amor adiado, buscado, algo ainda por cumprir. É um amor interceptado pelo silêncio, tanto quanto o silêncio possa ser aquilo que mais se ama. Gera-se, deste modo, uma interessante ambiguidade na poesia de Rute Mota. A sua natureza epigramática, muito próxima da poesia dita oriental, como que confere ao poema uma espécie de carácter salvífico gorado à partida. Ou seja, estando ciente de que nenhuma palavra nos salva, a autora não ousa prescindir da palavra «para não cair do mundo» (p. 27), na medida em que é a palavra o que mais contradiz o tal silêncio que intercepta o amor, tanto quanto esse silêncio possa ser aquilo que mais se ama. Em Um Pássaro no Lugar do Coração, o segundo conjunto, a natureza vem ocupar o lugar dos afectos, que é também o lugar do belo e do amor. Esta natureza surge na forma do vento, de um pássaro, de flores, na forma dos pinheiros. Mas é ainda o amor quem apela: «Do que resta, aos poucos, / o pássaro bicando - // pudesse ele firmar o propósito / de amar nunca mais // e voar depois» (p. 54). Cabe relevar a extrema beleza e simplicidade de alguns destes pequeníssimos poemas, os quais denotam uma mão tão frágil quanto dominadora na sua concepção. Atentemo-nos, a título de exemplo, a este poema do conjunto intitulado Época de Caça: «Um corpo fazendo deserto de outro corpo / com suas pedras, seus oásis, suas vastas areias / um corpo à beira de outro corpo / deserto frente a deserto / um nómada fazendo chão de outro nómada / areias que sempre em movimento permanecem / como inexpugnáveis / inexpugnável corpo a conhecer. // Um corpo medindo outro corpo / como a temperatura de um deserto, suas riquezas / seu início, textura de areia em movimento: / quantas pedras, quantos cactos / quantas violências e mansidões que eu possa beber?» (p. 64) A linguagem que se adensa nestes versos é a linguagem de um amor tornado eros, carne, sangue, corpo. Curiosa a metáfora do deserto, se nos lembrarmos de um dos versos do poema que abre este livro: «reaprendo o silêncio deserto a deserto» (p. 7). O que vem à tona é um erotismo subtil, como que rasurado numa poesia cuja transparência arrisca tornar invisível o que nela existe de mais notável. Nada podemos concluir da leitura deste quarto capítulo da Colecção de Autores Torreenses que a Livraria Livro do Dia em boa hora, pela mão de Luís Filipe Cristóvão, resolveu concretizar. Resta-me apenas tornar bem claro que, em termos de poesia contemporânea portuguesa, é uma das mais belas surpresas deste ano. Que importa que poucos dêem por isso num país onde ninguém dá por nada?

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