sexta-feira, 28 de setembro de 2007

MANUAL DO DESEMPREGADO

Há livros com vírgulas a mais, sintaxes duvidosas, gralhas, erros ortográficos irritantes, rimas óbvias, que conseguem o que outros, imaculadamente escritos e revistos, jamais hão-de conseguir: desconfortar-nos. Não que esse desconforto venha das nódoas gramaticais e das lambuzadelas semânticas, essas a gente desculpa nos contextos em que são desculpáveis. Dir-me-ão não existirem tais contextos. Discordo. Por isso mesmo soa mal, em certos antros, falar como se se estivesse em colóquio. Que me perdoem as freiras da língua pátria, mas durante a cópula um homem fode ou é fodido, não faz amor. E a um bêbedo não se exige que acerte o passo. Pois bem, há livros que são da foda e da bebedeira, livros que acontecem como um acto de expurgação, livros tão derrisórios quanto revoltantes, na medida em que revoltante é a própria matéria da qual são feitos. Conhecem algum livro assim? O Manual do desempregado, de Liberato, não será um desses livros, mas anda lá perto. Trata-se de um pequeno volume de 47 páginas, publicado pelas Edições Mortas em ano que apenas editor e autor saberão. O Depósito Legal é /05, o lançamento parece ter ocorrido em Fevereiro de 2007. Abre com um poema, que diremos visual, intitulado Dados do INE. Por baixo de um desses dados do INE – «Os Fumadores desempregados / são os que mais fumam» – a imagem de um maço de tabaco da marca Marlboro com o seguinte aviso: «O desemprego pode provocar morte lenta e dolorosa» (p. 5). Liberato ataca assim o mal do século, a peste que muitos contaminou e outros tantos ameaça contaminar, ataca a peste com ironia, mas uma ironia que não é senão a velha forma de disfarçar as pústulas provocadas pela peste, de tratar a febre provocada pela infecção. Quando digo tratar não quero dizer curar, que a peste não tem cura, a peste é uma morte que se adia com o riso, que se denuncia com o riso, que se acusa com o riso, o riso sardónico e delirante dos infectados. É por isso que os poemas deste Manual do desempregado resultam num delirante e pestilento riso, o riso de quem se entrega à loucura de outra coisa não poder fazer que não seja rir, rir de si próprio e dos outros, rir do mundo, rir em gargalhadas que cospem a saliva pestífera do subsídio social, do rendimento mínimo, da vacuidade do discurso político, dos Centros de Emprego, dos Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, da burocracia dos centros, das designações burocráticas dos centros, das estatísticas, dos envelopes e dos postais RSF do IEFP, da formação profissional. É neste cenário kafkiano, beckettiano, absurdo, que o desempregado aprende, ou não, a sobreviver. É neste cenário que a sobrevivência se transforma no emprego do desempregado: «Que o desemprego, ele é um pecado que parece bruxedo, / tem é que se lhe dar conta do recado, para não se ter medo» (p. 47). Pelo que o melhor será mesmo chutar umas rimas, fumar uns cigarros, observar as miúdas na Biblioteca Municipal, passar os olhos pela televisão. Entre referências a Vieira da Silva, Gorki, Brecht, Cavaco Silva, Álvaro de Campos, James Dean, Marlon Brando e Montegomery Cliff, filmes de Rainer Werner Fassbinder, Figo, Liszt, Sérgio Godinho, Freud, Liberato passa para o poema o tempo, o seu tempo, como quem espreme uma borbulha para a página. Neste manual não se encontram soluções nem se sugerem caminhos, neste manual encontra-se apenas o registo de uma aprendizagem dolorosa, a lembrar, no seu tom geral, a comédia de um Nani Moretti, uma comédia auto-biográfica, eivada daquela tragédia que certas dentaduras melancólicas espelham por detrás do riso.

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