quarta-feira, 28 de novembro de 2007

ÉDITH PIAF

Agora que toda a gente anda entretida com o exercício cinematográfico que Anton Corbijn dedicou à memória do idolatrado Ian Curtis, resolvi rever, em versão Digital Versatile Disc, esse La Môme, de Olivier Dahan, que por cá apareceu com o título La Vie En Rose. A lindíssima Marion Cotillard dá corpo à alma de Édith Piaf, que, como é por demais sabido, não abundava em argumentos de beleza física. Na verdade, o seu único argumento era mesmo a voz. Cotillard aparece inacreditavelmente transformada, desempenhando aquilo a que o meu pai, e eu sublinho, chamaria um papelão. Um papelão é quando um actor se ultrapassa, não permitindo, porém, que a personagem o ultrapasse, é quando deixa de ser ele próprio para encarnar absolutamente numa personagem que nos convence por ser não apenas um corpo, mas, acima de tudo, um corpo com alma. Este apêndice é decisivo, pois sabemos que um corpo sem alma é como uma campa sem flores. Por falar nisso, quando há anos visitei o Père-Lachaise demorei-me alguns minutos junto à campa onde foi enterrada a garganta de Piaf. Durante esses minutos de compenetração deu para perceber que a sua voz andava por ali, naquele silêncio, como um pardal a esconder-se das fisgas. A voz de Piaf, eternamente viva, faz-se ouvir no silêncio parisiense. É que grande parte do imaginário que guardamos da cidade das luzes deve muito a essa voz estrondosa, a voz do pardal que era mal tratado pela mãe, viveu a infância num prostíbulo, ao cuidado de rameiras para todo o serviço, adquiriu com o pai a inquietude da vida nómada e boémia, saltou das ruas para os cabarés, dos cabarés para o music hall, do music hall para o Carnegie Hall de Nova York. Não se enforcou e viveu alguns anos mais que o jovem Curtis, viveu com todas as letras, dando consistência às palavras do poeta Al Berto quando este escrevia, logo no seu livro inicial: «sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir. vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável, para que a morte nada encontre de mim quando vier». Assim fez o pardalinho cantante, e a morte nada encontrou, de facto, para lhe usurpar (talvez um amor em vida, quem sabe). Porque tudo o que o pardalinho cantante tinha deixou ao nosso cuidado, tudo o que ele tinha era aquela voz, aquele exemplo, vindo sabe-se lá de onde, como uma dor, daquelas dores que põem os gritos a assobiar, que só reconhecemos em mais uma ou duas vozes (Billie Holiday, por exemplo). Quando penso em Édith Piaf não sei que pensar, penso apenas que Édith terá nascido para ser Piaf, e que, de alguma forma, essa coisa a que chamam destino ganhou sentido no seu percurso de vida. O filme de Olivier Dahan, muito sinceramente, interessa-me pouco. Só o vi para ver Piaf. E, de certa forma, vi-a por lá. Mérito absoluto de Marion Cotillard. Se chegar a ir ver Control, é em Édith, acreditem, que pensarei mais uma vez.

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