sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A DISFUNÇÃO LÍRICA

Desde a reunião da sua obra inicial, ocorrida no volume intitulado Um Quarto Com Cidades Ao Fundo (Quasi, 2000), Inês Lourenço (n. 1942) publicou três colectâneas de poemas: A Enganosa Respiração da Manhã (Asa, 2002), Logros Consentidos (& etc., 2005) e, já este ano, também com a chancela da & etc., A Disfunção Lírica. Cabe dizer, desde logo, que o livro mais recente apenas confirma o que o anterior anunciava, isto é, uma poesia declarada e voluntariamente sem qualidades. Tentemos pensar um pouco no que possa significar esta poesia sem qualidades. Nada tem de novo que os poetas optem por centrar-se nas coisas vulgares, como sejam as do quotidiano, ou que recorram com frequência aos dados da experiência, no que eles possam ter de diálogo com os dados da memória. Nada tem de novo que ao onírico e ao hermético, alguns poetas prefiram o empírico e a busca de uma certa objectividade que é, como sabemos, sempre muito discutível em qualquer que seja o tipo de discurso poético em causa. O que pode haver de novo nesta chamada poesia sem qualidades, não é novo. É antes um caminho dos muitos que a encruzilhada poética nos coloca. Optar por tal caminho tem os seus perigos, pois o poeta arrisca a acusação sempre pronta daqueles que julgam ser banal tudo o que seja inteligível, daqueles que estão convencidos ter a poesia lugar apenas na cátedra das palavras eloquentes, das imagens indecifráveis, dos jogos linguísticos, das metáforas sem sentido. Quando, já lá vão mais de 50 anos, o poeta Nicanor Parra propôs uma antipoesía, o que havia nessa proposta era a necessidade de um discurso poético reconvertido à sua raiz popular, uma poesia desmistificada, sem epígonos, única na sua forma de ser resistente a qualquer auréola castradora do sentido mais nobre do acto poético: a transgressão. Parra terá sido apenas um dos praticantes mais radicais de uma tendência que já vinha fazendo escola, pelo menos, desde Baudelaire. Mas poderíamos ir ainda a tempos muito mais remotos se fosse nossa intenção tornar claro que a oposição entre corpo e alma, experiência e razão, percepção e sonho, nunca foi de agora senão nessa forma de actualizar o que é de sempre. Mais interessante é quando o poeta ousa corromper todos esses limites, todas essas fronteiras, edificando algo que seja, pelo menos, uma síntese fiel à sua respiração autónoma. Sabemos, porém, ser sempre esse o dilema de quem faz poesia, pelo menos de quem a faça consciente da sua inutilidade. É, precisamente, o dilema dessa inutilidade – «The poetry does not matter», escrevia T. S. Eliot em East Coker – que Inês Lourenço vem lembrar na sua mais recente colectânea de poemas. A intenção está clara nas epígrafes de Thomas Mann, Jorge de Sena, Alberto Pimenta, Luiza Neto Jorge. Todas elas apontam para a desinflamação da poesia, do poema, do poeta. Ao passo que alguns enfatizam, sublimando o lugar do poeta num mundo cada vez mais avesso à poesia, os poemas de A Disfunção Lírica optam por desinchar a fatuidade abastardada do meio que envolve os fazedores de poesia. Inês Lourenço conhecê-lo-á como poucos entre nós, dada a sua experiência, durante mais de 10 anos, como editora de Hífen – Cadernos de Poesia, por onde passaram praticamente todos os nomes relevantes da poesia portuguesa do final do século passado. Dividido em três partes – Preâmbulo, Caído em Desuso, Erosivo Eros – às quais podemos fazer corresponder três campos de tiro poético – Literário, Social, Amoroso -, este livro provoca-nos sentimentos antagónicos. Não será esse o sentido último da boa poesia? Se, por um lado, reconhecemos nestes poemas uma ironia que nos agrada sobremaneira, por outro lado, tendemos a sentir neles uma decepção, com justificações muito pessoais, que julgamos menos interessante, à excepção dos casos em que a decepção atinge um nível de corrosibilidade que resulta em implacáveis retratos de um tempo que também é, para todos os efeitos, o nosso. Não sei como serão lidos alguns destes poemas daqui a uns anos, mas quem os vier a ler, se vier, não deixará de encontrar neles um desencanto demasiado típico de quem está insatisfeito com o seu tempo, aquele desencanto que nos leva sempre a crer que, no futuro, o péssimo mundo de hoje será recordado amanhã com poética melancolia.

Sem comentários: