sábado, 3 de novembro de 2007

O NOSSO INFERNO

Quem viu O Convento (1995), de Manoel de Oliveira, recordar-se-á certamente da sequência. Quem não viu ficará com um vaga ideia após a minha descrição. Helène (Catherine Deneuve) e o professor Michael Padovic (John Malkovic) estão alojados num convento na Serra da Arrábida onde o professor julga poder vir a obter informações que comprovem a sua tese segundo a qual o escritor William Shakespeare era um judeu espanhol. A dada altura, pela noite, Helène procura Michael no seu quarto. Apesar de casados, dormem em quartos separados. Michael, imerso no trabalho, nem repara na presença de Helène que, depois de o abraçar, sente a sua indiferença e retorna, com um ar algo amargurado, aos seus aposentos. Não deixa, no entanto, de fazer notar o seu desgosto fechando a porta com força. O estrondo chama a atenção de Michael, que larga o trabalho, levanta-se e fecha a porta do seu quarto. Logo de seguida Helène volta a abrir a porta, olha, por uma frincha, a luz do quarto de Michael apagar-se e, mais uma vez, enclausura-se com força no seu quarto. Michael levanta-se, sai do quarto, bate à porta de Helène. Esta está bem junto à porta, do lado de dentro, mas não responde. O seu silêncio tem, digamos assim, a voz de uma pequena vingança. Limita-se a apagar a luz, dando a entender a Michael já ser tarde para querer alguma coisa com ele. Michael resigna-se, provavelmente arrependido, não sabemos, mas torna ao seu quarto e apaga a luz. Helène ainda volta uma derradeira vez a abrir a porta. Mas desta feita vê Baltar (Luís Miguel Cintra), o enigmático guardião do convento, que se aproxima. Baltar está apanhado por Helène, uma mulher que nos é apresentada como sendo perigosa, sedutora e manipuladora, mas esta recolhe-se e apaga a luz. Termina assim a sequência, um jogo de portas abrindo-se e fechando-se onde muitas intenções são sugeridas, diversos desejos arvorados, mas nada de absolutamente fulcral acontece. O que acontece ali é o que quase sempre nos passa despercebido, é a forma como fazemos bluf com as emoções, por vezes em jogos perigosos, outras vezes em partidas inocentes. Mas esse bluf, típico nas almas manipuladoras, tem muito que se lhe diga. Provavelmente, a espaços, todos nós o praticamos, todos nós sentimos necessidade de, a dada altura, pôr os outros à prova, tanto quanto nos pomos à prova nessas provas que impingimos aos outros. Levados ao extremo, estes jogos podem assumir contornos insuportáveis. Arno Gruen, n’A Loucura da Normalidade, dizia que as manobras de diversão «fazem parte dos instrumentos básicos do psicopata. Ele destrói a ligação entre os acontecimentos e os sentimentos que provocam em nós. Ou então desvia as atenções para um pormenor com forte carga sentimental. Com isto, faz-nos duvidar da nossa percepção da situação». No fundo é sempre este o objectivo: fazermos os outros duvidarem da sua percepção da situação, levando a água ao nosso moinho, puxando a brasa à nossa sardinha, fazer o outro vacilar, como um predador agindo sobre a sua presa. Naquela sequência de portas a serem abertas e fechadas mostra-se não só os mecanismos pelos quais se rege uma alma manipuladora, mas a fragilidade desses mesmos mecanismos. Suponhamos que quando Helène procurou Michael este não lhe tinha sido indiferente. Suponhamos que Michael tinha recebido o abraço de Helène com afecto, que a abraçava, que a beijava, partindo daí para uma grande noite de amor. Não foi isso que sucedeu, mas suponhamos que era isso que sucedia. Evitava-se o jogo, a manipulação, a instrumentalização das emoções e das intenções frustradas que despoletam essas mesmas emoções. Tudo isso seria evitável houvesse correspondência entre resposta e intenção. Tal correspondência é típica das fábulas amorosas mais delicodoces, não se compadece com a vida ela mesma. A vida ela mesma, na melhor das hipóteses, não passa de um sucessivo pedido de desculpas, uma eterna reincidência na trégua. É este o nosso inferno.

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