segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

JOÃO ALVES

Comecemos pelo fim: «descansa em paz meu amor / esta noite e todas as noites que faltam / enquanto eu vou arrumando os nossos poucos / haveres e escrevo este meu último poema / adeus mundo até já meu amor» (p. 77). Assim termina o mais recente tomo da obra poética de Jorge Aguiar Oliveira, poeta cuja singularidade começa, desde logo, no processo de publicação da sua poesia. Desde 1983 que Jorge Aguiar Oliveira dá versos à estampa, quase sempre em regime de edição de autor e num contínuo diálogo com a obra do passado que reforça a ideia de que uma obra é uma construção sempre em aberto. O tom fatalista destes seus últimos versos, é, por isso mesmo, mas não só por isso, um tom ao mesmo tempo trágico e, mais uma vez, fora do comum. Ainda mais trágico quando somos informados, de forma clara e abrupta, do seu sentido. Levarem como título um nome próprio, homónimo da obra aqui em causa, já seria suficientemente esclarecedor para que dispensássemos outros pormenores biográficos. Mas nada disso tem importância, ao pé de versos que não são apenas versos. Versos que atingem uma outra dimensão, que não apenas a dimensão estética da forma como cada um encara para si a poesia. Estes são versos desesperados que denunciam a hipocrisia com que nos "bainhamos" no mundo, são versos de denúncia e resistência, são versos que desabafam com todas as letras possíveis o estertor da vida: «estamos sós neste mundo meu amor / tu só me tens a mim e eu a ti // e até a mais ingrata das mães a tua / não te veio ver porque não quis / além de te desejar a morte / miserável mulher» (p. 76). Este é um livro especial, um livro que não começa nem acaba nos versos. Antes começa e acaba nos afectos, na mais cruel, nua e crua exposição dos afectos: «envolvo o teu corpo quase morto em carícias / e a mim a nós não houve ninguém que viesse / dar-nos ao menos um abraço // ficaram por um apoio teleconsolo – tens de cuidar de ti... / tens de te alimentar... sai. Vai ter com alguém... e / mesmo eu dizendo que não tenho ninguém / porque todos em Évora me abandonaram / como cínicos cadáveres de fantasmas inquisitórios, / ninguém fez cem quilómetros para me vir acudir» (p. 74). O mundo, digo eu, precisa de poemas assim. Precisa de livros assim. Livros que gritem alto a «perfeita degradação / humana» (p. 69). Podíamos referir o «carácter explicitamente homossexual» desta poesia, a «desinflação do poético», a ironia, a sublimação do quotidiano, a linguagem desvelada, pornográfica, que tudo se resumiria à epígrafe de Manoel de Barros: «Tudo aquilo que a nossa / Civilização rejeita, pisa e mija em cima, / Serve para poesia». Jorge Aguiar Oliveira toma à letra o axioma e transforma uma colecção de escritos de WC, num conjunto de irrepreensíveis poemas sobre a solidão nos tempos que correm - Puzzles de WC: «Deixando sentadas à mesa / filha e mulher, o cavalheiro / levanta-se e vai ao mictório / mirar a morcela doutro / que lá está há mais de meia-hora. / Desagradado com o encontro / rabisca na porta à saída: // é só rabicholas!» (p. 7) Depois há ainda Figuras do Presépio, histórias “de faca e alguidar” que compõem a segunda parte deste livro. Ocupam-se, sobretudo, em “ridicularizar” os «terroristas da moral». E fazem-no de uma forma certeira: «levam porrada do marido encharcado / em vinho e raiva e por raiva / e ódio uns fodem-nas querendo / elas ou não doa ou não / choram resignadas e sentenciam / mas é o meu marido» (p. 28). A terminar o intróito, uma noite malvada que é preciso sossegar antes que a morte nos visite a tristeza. Porque «talvez só os medos não entrem em ruína neste século» (p. 58). E só essa ruína pode explicar a solidão com que, por vezes, somos obrigados a suportar a dor da perda daqueles que amamos. Mas chegados aí, já não estamos no intróito. Estamos no lugar da tragédia.

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