Em termos de catolicismo, as minhas aptidões ficam-se por aqui: sou baptizado e fiz a primeira comunhão, ainda que a contragosto e com alguma patranha pelo caminho. Faltava à maior parte das sessões de catequese, aproveitando para circundar os jardins da igreja onde, de quando em vez, estacionava uma carrinha com um aspecto caricato. Tratava-se de uma das célebres Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Muitos livros folheei e li à custa dessas faltas, pelo que o Senhor perdoar-me-á quando chegar o momento de ser julgado. Com a mesma idade que eu tinha então, os meninos que vivem no Curdistão iraniano, junto à fronteira com o Iraque, não só não têm direito a Bibliotecas Itinerantes como, pura e simplesmente, não têm escola onde ir. Na sua grande maioria, são analfabetos. Não aprendem a ler, a escrever, a contar, nem estão para aí voltados. Essa aprendizagem está dependente de uma disponibilidade que aqueles meninos não têm. Sobrevivem do contrabando, sujeitando-se às balas dos guardas fronteiriços, percorrendo quilómetros com caixas às costas, dissimulando-se entre rebanhos de cabras, por entre montes e vales agrestes e ameaçadores. Muito de vez em quando, lá se encontra um que quer aprender a escrever o seu nome. À procura desses poucos, andam os professores. Calcorreiam caminho com o quadro negro às costas, tentam a sorte em aldeias refundidas e nada hospitaleiras. São professores itinerantes, como as Bibliotecas, que tudo o que têm para ensinar é o pouco que sabem a mais do que aqueles que nada sabem: contar, multiplicar, dividir, escrever, ler. No filme O Quadro Negro, da iraniana Samira Makhmalbaf, há ainda um professor que, após muita insistência, consegue convencer um grupo de velhos da qualidade dos seus serviços. Não como professor, mas enquanto guia até à região, na fronteira, para onde os velhos pretendem ir com o intuito de aí morrerem. Os honorários ser-lhe-ão pagos em nozes. Entre os velhos há uma mulher com uma criança. O professor junta-se à mulher durante esta peregrinação a caminho da morte, oferecendo-lhe o quadro negro como dote de casamento. Mas ela não o quer, não quer aprender a soletrar a palavra amo-te, o seu coração está fechado para o seu pequeno filho. Separam-se. Ele fica com as nozes, ela com o quadro negro. No grupo das crianças traficantes, outro professor desfaz o quadro para construir umas talas que servirão de apoio à perna de um jovem acidentado. Nas duas histórias que se cruzam n’O Quadro Negro, ambos os quadros são utilizados para algo bem diferente daquilo que seria expectável. Apesar das variantes culturais e sociais que determinam esta história, há algo de universal que podemos aproveitar dela. Nomeadamente, a escassez de gente a ver no ensino uma actividade útil. Nem que seja a utilidade de um quadro negro através do qual se transmitem as sílabas de um nome.
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