segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

PASTOR DE RENAS


Na passada quinta feira, os meus olhos prenderam-se ao ecrã da televisão. Tudo por causa do documentário Komi, A Journey Across The Artic (França, 2007), exibido no segundo canal da RTP. Em poucas palavras, os Komi são pastores de renas, vivem na Sibéria, debaixo de temperaturas inóspitas, e são uns poucos resistentes de uma comunidade que tem vindo a desaparecer nesta era pouco dada a estilos de vida fatigantes. Esta última parte é, reconheço, uma ilusão. Estilo de vida fatigante é também o de qualquer burguês assolado pelo trabalho, invadido pelas obrigações que lhe garantirão o conforto do lar, um conforto que, à custa de tanto sapo engolido, termina, na melhor das hipóteses, no consolo de uma receita de ansiolíticos. Mas regressando aos Komi, convém dizer da beleza das imagens que o documentário proporciona, assim como, sem qualquer tipo de lirismo bacoco, da comovente forma de vida daquele povo. Ali andam com as renas, de um lado para o outro, ora montando, ora desmontando acampamentos, cientes da necessidade do seu papel. Bom seria que, nas sociedades ditas desenvolvidas, houvesse tanta perspicácia na forma como se encara a vida, ou seja, em função de um papel, por mais simplório que seja, que é o papel que se tem a cumprir para que a vida seja cumprida. Aqueles que restam dos Komi, restam por não quererem deixar de ser Komi. Dizem que assim se sentem úteis, que de outra forma perderiam a sua utilidade, que não precisam de ouro, têm as renas, que as renas são tudo para eles, o seu ouro. Qualquer pastor pode falar assim dos seus animais, mas os Komi falam debaixo de 30 a 40 graus negativos. É preciso ter osso. Sempre que me perco nestes documentários, sinto que andamos há muito em busca das respostas erradas. Não deixa de ser caricato - permitam-me o salto, digamos assim, epistemológico -, que num país onde «o administrador (…) ganha, em média, 32 vezes mais do que o trabalhador da empresa que gere» se perca tanto tempo a discutir se se deverá ou não poder fumar em casinos e tabernas; chega mesmo a ser grotesco que, num país onde há pessoas que morrem nos corredores dos hospitais por não haver quem as consulte, se entretenham as hostes a discutir as baforadas de um palerma qualquer que procura no jogo a sorte que lhe foge na vida; é mesmo ridículo que havendo neste país um tal de Pedro Queiróz Pereira, de uma tal Semapa, que ganha 219 vezes mais do que um funcionário da empresa que administra, tanta gente perca tempo com o imperial, fundamental, essencial, imprescindível direito à fumaça ou, digamo-lo de outro modo, com o revoltante atentado a esse direito fundamental da humanidade que é o pasto dos fumadores (entre os quais, diga-se, me incluo). Debaixo de tanta poeira raivosa, permitam-me então relembrar-vos que: «Se há ranking em que Portugal está na linha da frente é no da discrepância entre os rendimentos dos gestores e os redimentos dos trabalhadores. O administrador português ganha, em média, 32 vezes mais do que o trabalhador da empresa que gere. Ultrapassa o administrador espanhol, que aufere 15 vezes mais do que o funcionário; ganha ao gestor britânico que tem um rendimento 14 vezes maior do que o trabalhador do Reino Unido. E leva uma grande vantagem sobre o administrador alemão que ganha 10 vezes mais do que o funcionário alemão.» Não sei se isto vos revolta, se vos merecerá algum comentário, se apelará às entranhas da vossa rebelião, se vos despertará os instintos animais da cruel indignação, da indignação pura, de corpo todo, a nu, a ponto de vos fazer levantar o cu da poltrona e pôr-vos de mal com o mundo em que viveis. Não sei. Sei apenas que a mim cria-me um certo atrito, uma espécie de sonho irremissível: o de pensar que, também eu, poderia ter tido sorte diferente. Poderia, por exemplo, ter nascido na Sibéria e ser pastor de renas.

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