quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A DECISÃO DA IDADE

Ruy Duarte de Carvalho (n.1941) acaba de ser galardoado com mais um prémio literário, nomeadamente o Prémio Literário Casino da Póvoa. Quando escrevi sobre Lavra, a reunião de 30 anos de labor poético do mesmo autor, comecei por referir-me à desatenção de que tinha sido vítima a sua obra. Voltei a pegar nesse volume e num outro, A Decisão da Idade (Livraria Sá da Costa Editora, 1976). Verifico que foram feitos 3000 exemplares deste último e apenas 1000 de Lavra. Passaram mais de 30 anos, publica-se muito, os projectos editoriais proliferam como cogumelos, autores são mais que livros vendidos, o resultado fica à vista: muita parra, pouca uva. Mas decidiu a idade que as palavras do poeta angolano (escalabitano de nascença) adquirissem outra fluorescência nos últimos anos, com entrevistas, predicações, exposições. Releio A Decisão da Idade e penso na justiça deste reconhecimento. As três partes do livro – Chão de oferta, Tempo de ausência, Noção geográfica – remetem-me mais uma vez para uma paisagem tão telúrica quão erótica, preenchida por matas, manadas, cacimba, capins, onde a aridez do deserto contrasta com a fecundidade das terras. E é essa fecundidade que acaba sobrepondo-se a tudo, numa poesia recuperadora daquele espanto e respeito que o homem foi perdendo para com os ciclos da natureza, para com a natureza ela mesma. Não se trata de recuperar metaforicamente ou repercutir sentimentalmente o elogio da natureza. Trata-se antes de voltar a olhá-la com o rigor de quem nela e apenas por ela sobrevive. Há igualmente nesta dobra do olhar uma atitude política, mas política no sentido de demarcar antropologicamente o lugar do homem no mundo: «Um homem vem fundir geografias, polarizar as forças da manhã deserta, vem fecundar as latitudes nuas e violar segredos de falésias. Um homem vem, destrói a derradeira protecção da lenda, transita triunfante a bruma do silêncio, afaga, da idade, o corpo descuidado, revolve-se na febre, despoja-se de si e oferece o peito» (p. 49). Irrompe, na última parte do livro, a palavra força. Esta força é a da fecundação, a de trazer a chuva à terra seca, a de uma luta, a luta pela sobrevivência, que é a luta da flor que «aguarda paciente a gota de água» (p. 64). Confunde-se o homem, nos ciclos do corpo, com esta condição da natureza, já que outra coisa não será o homem senão parte integrante, ínfima, de um todo que o rodeia, condiciona e, até certo ponto, determina. No poema dramático intitulado Noção geográfica essa condição fica bem patente nas falas da Mulher: «Não são as minhas mãos mas tenho mãos. / E não as cito aqui para inventar palavras / por dentro das palavras / e procurar falar das mãos das coisas / onde as palavras mal adregam ser. / Eu falo destes meus dez dedos negros / com que amasso o estrume / e dou notícia à chuva de que estou atenta / e dou vazão à força da semente / que por mim desliza / para ascender seu fruto às minhas mãos / no tempo repetido das colheitas. / Cito os meus dedos para invocar a cor / da terra que pisais e donde apenas / conheceis o fruto já maduro / que estas mãos ofertam / pousado nos dez dedos que o criaram. / As mesmas rugas que a semente vence / ao deslizar para a terra por meus braços / são as que vós tocais ao tactear / as minhas mãos em busca de alimento / nestes dez dedos para vós abertos» (p. 73). Não sendo esta a minha linguagem, há qualquer coisa nesta linguagem que me atrai e cativa. Ao contrário do que sucede com outros poetas africanos, nem sequer aqui nos podemos desculpar com o lado exótico das palavras e dos ritmos que as palavras consentem. Esse lado, praticamente ausente nestes poemas, converte-se num telurismo que me agrada sobremaneira, talvez porque o sinta cada vez mais distante e ausente. Neste sentido, é também esta uma poesia de resistência. De resistência à perda dessa relação do humano com a sua fonte mais próxima, a terra, e de resistência ao esvaziamento da tradição. O mundo é cada vez mais outro, eu sei. Assim como sei, ou pelo menos desconfio, que, fosse hoje, teriam sido feitos não 3000 mas 300 exemplares deste livro.

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