sábado, 9 de fevereiro de 2008

PRIMEIRA ANTOLOGIA DE MICRO-FICÇÃO PORTUGUESA

 


ERA UMA VEZ
Era uma vez um misantropo que organizou um encontro de misantropos. Todos os misantropos compareceram e foi uma grande festa. Criaram a Associação de Encontros Para Misantropos, colocando fim à misantropia.
 
O PRIMEIRO AMOR
Com o passar dos anos, o ursinho de peluche foi trocado por um lego, o lego foi trocado por um livro, o livro foi trocado por uma consola, a consola foi trocada pelo primeiro amor, o primeiro amor foi trocado por uma mulher, a mulher foi trocada pelos filhos, os filhos foram trocados pelo trabalho, o trabalho foi trocado pela solidão, a solidão foi trocada pelo ursinho de peluche. Um homem regressa sempre ao seu primeiro amor.
 
DETECTOR DE METAIS
O detector de metais do aeroporto começou a apitar. Pediram ao passageiro que despejasse os bolsos. Continuava a apitar. Tirou o cinto e os sapatos. Não parava de apitar. Despiu as calças e a camisa. O detector insistia em detectar. Despiu-se totalmente. Detectava, continuava a detectar, não parava de detectar. Rasgaram-lhe o peito, observaram-no por dentro. Rasparam-lhe os ossos. Cortaram-lhe o coração às postas, os pulmões, etc. E o detector não parava de detectar. Foi então que alguém se lembrou do óbvio: ele tinha uma saúde de ferro.
 
UM VELHO
Ao cair da cadeira, o velho reparou que toda a gente o observava com comiseração. Tentou erguer-se, mas não conseguiu. Estranhou que ninguém o ajudasse. Olhou novamente à sua volta. O ar de comiseração fora substituído por uma espécie de espera nervosa. Perante tal constatação, o velho esmoreceu e fingiu-se morto. Nesse instante um grupo de pessoas foi na sua direcção e bateu-lhe rosto. Uma das pessoas do grupo abriu alas, ajoelhou-se e iniciou os procedimentos de reanimação com respiração boca a boca. Quando o velho abriu os olhos, toda a gente aplaudiu. O indivíduo da respiração boca a boca fora um herói. Três pessoas ajudaram o velho a pôr-se de pé. Já hirto, olhou à sua volta, agradeceu a preocupação das pessoas e pediu desculpa ao tipo da respiração boca a boca.
 
O JORNALISTA
Um jornalista barricou-se na primeira página do jornal para o qual trabalhava. Não pretendia nada para si, reivindicava apenas um pouco de jornalismo na capa.
 
VIDENTES
Quando as raves chegaram à região, montadas em tendas de circo, Pichafeia descobriu que nem todas as pastilhas eram Gorila. Em dias, converteu-se no maior dealer da poção mágica. Circulava de garrafa de água na mão e óculos escuros pendurados nas orelhas. Num acelerado regresso de uma party, ao desviar-se de um cortejo funerário que se atravessou no caminho, embateu contra o muro do cemitério. Ao morto que ia a enterrar, juntou-se, então, Pichafeia. As videntes da zona afiançam que, quando o espírito lhes aparece, escutam batidas techno.
 
RUSGA
Durante o concerto houve uma rusga. Um dos pastores-alemães engraçou comigo. Os guardas, desconfiados, começaram a apalpar-me. Depois revistaram-me os bolsos, invadiram-me a carteira, mandaram-me descalçar. Insatisfeitos, e porque o cão não me largava, mandaram-me despir. Já despido, revistaram-me todos os orifícios. Nada. Um dos guardas, desesperado, espetou uma faca na minha barriga, abriu-me, com um único corte, do umbigo ao pescoço, espreitou para dentro do meu corpo rasgado e nada viu. Esvaía-me em sangue ali prostrado, quando o cão se lançou à minha carne. O bicho foi direitinho aos rins, onde finalmente os guardas encontraram duas pedras enormes.
 
UMA PRADARIA NO ROSTO
 
Ao David Luz,
pelo remate.
 
Tinha um pêlo da barba encravado. Começou a espremer a bochecha infecta. Lá do fundo surdiu um tufo de pêlos pequeninos, muito colados uns aos outros, como se fossem um molho de erva. Nesse dia, deixou de fazer sentido olhar-se ao espelho e sentir-se desértico. Percebera que um rosto masculino é como uma pradaria. E se espremermos bem, com sorte, sai de lá o Michael Landon.
 
O SUCATEIRO
O sucateiro tomou banho, barbeou-se, vestiu o seu melhor fato. Desentranhou com sabão azul os óleos das unhas. Foi ao baile cheirando a novo. Conquistou uma moça a quem prometeu dois sóis, depois de um pé de dança e um copo de vinho. Quando a prometeu, ela perguntou-lhe a profissão. Sucateiro, respondeu. Morreu a cheirar a ferrugem.
 
PENDURA
O pendura não descolava os olhos do conta-quilómetros, controlando obsessivamente os limites de velocidade. Quando pararam, abriu a porta e saiu. Certamente estará o leitor à espera de algo excepcional, como por exemplo o pendura ter sido atropelado ao apear-se. Nada disso. Limitou-se a sair do carro, fechou a porta e foi à vida. A verdade é que nem sequer agradeceu a boleia.
 
Henrique Manuel Bento Fialho, in “Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa”, selecção e organização de Rui Costa e André Sebastião, prefácio de Henrique Fialho, Colecção Anti-Matéria, Exodus, 7 Dias 6 Noites, Fevereiro de 2008 pp. 52-62. Reeditado com tradução para o árabe de Said Benabdelouahed, Racines, 2010.
 
Autores: Alcides, Alexandre Au-Yong Oliveira, Fernando Dinis, Fernando Esteves Pinto, Fernando Gomes, Filipe Guerra, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Lourenço, João Carlos Silva, Luís Ene, Maria João Lopes Fernandes, Paulo Rodrigues Ferreira, Paulo Kellerman, Pedro Afonso, Pedro Amaral, Rafael Mota Miranda, Rui Almeida, Rui Costa, Rui Manuel Amaral, Rute Mota, Sara Monteiro, Sónia Duarte.

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