quarta-feira, 19 de março de 2008

A LENTA VOLÚPIA DE CAIR

Em A Lenta Volúpia de Cair, publicado pelas Quasi há um ano, Pedro Eiras (n. 1975) reuniu ensaios sobre poesia saídos anteriormente em revistas tais como Relâmpago, Textos e Pretextos, Colóquio Letras, A Phala, entre outras. À excepção do ensaio inicial, centrado numa reflexão sobre a natureza da poesia, todos os textos focam autores e obras respectivas, não negligenciando, também aí, a interrogação acerca da essência da poesia, do lugar do poeta, da natureza do poema. Num desses textos, Eiras junta três recensões a obras distintas cujo elo de ligação é a poesia de Herberto Helder. Outros autores abordados são Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Fernando Echevarría, António Ramos Rosa, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina, António Manuel Pires Cabral, António Franco Alexandre, Luís Miguel Nava, Adília Lopes e Luís Quintais. São quase sempre abordados isoladamente, embora noutras ocasiões o sejam também comparativamente ou em diálogo com obras alheias. Este último processo de análise verifica-se em Faca partilhada (um diálogo entre as poesias de Sophia e de João Cabral de Melo Neto) e Viver o tempo (onde a poesia de Luís Quintais é interpretada à luz do cinema de Tarkovsky). Há ainda um curiosíssimo exercício, A «Litania» reescrita, dedicado às revisões do célebre poema de Eugénio de Andrade pelas vozes de Gastão Cruz e Manuel Gusmão. Pedro Eiras denota minúcia e inteligência na interpretação, agradando, mais ainda, por um certo risco no modo experimental como se coloca frente aos objectos de análise. Talvez essa experimentação seja o que mais encanta neste volume, não porque aligeire o carácter ensaístico da escrita – antes pelo contrário -, mas por cativar a leitura com uma clara capacidade de renovação dos métodos de análise. O mais evidente nestes ensaios é o gosto pelo paradoxo, a exclusão de qualquer chave interpretativa do poema, o que seria, aliás, contraditório com a própria natureza da poesia, a opção permanente por um esforço de desbravamento de novos territórios, novas hipóteses, novos caminhos. Não há, nos ensaios de A Lenta Volúpia de Cair, a presunção de uma certeza. Há antes uma disposição indagadora que desafia permanentemente o leitor do ensaio, ao mesmo tempo que o centra no desafio que o ensaísta estabelece com a obra ou as obras em discussão. Neste sentido, é especialmente relevante o ensaio de abertura. Ele funciona como uma espécie de pórtico para uma aventura, a aventura de quem ousa, mais que ler poesia, escrever sobre a poesia que lê. Essa aventura apenas resultará em algo profícuo se ficarem previamente definidas as regras do jogo. São essas regras, esses pressupostos, que Pedro Eiras estabelece no ensaio justamente intitulado O que é a poesia? Questão recorrente, como é sabido, e sempre sem resposta ou passível de múltiplas respostas, respostas que nos aparecem invariavelmente sob a forma de interrogações. Daí que o ensaísta deva, desde logo, resolver a possibilidade de alguns equívocos, assumindo que: «Perante o poema, perante o mundo, a ciência só é uma resposta adequada para certas perguntas. Partir do princípio de que o poema deve ser explicado, interpretado, perguntado é enganador. A verdade é apenas uma consequência longínqua, acidental, acessória do poema» (p. 16). Muito haveria a dizer acerca do que se segue, não é este o local mais indicado. Não posso, no entanto, deixar de evocar três ideias que ressaltam neste ensaio, ideias essas com as quais não concordo necessariamente mas que talvez sirvam para futuras discussões: 1. a poesia nasce no sagrado; 2. o regresso à ideia de inspiração; 3. a poesia é uma Queda, assim mesmo, com maiúscula. Em jeito de provocação, levantarei, a contraponto, outras três hipóteses: 1. a de que o sagrado nasce do profano; 2. a de que o regresso à inspiração pressupõe um abandono nunca consumado (aliás, partindo do princípio que a poesia seja uma respiração, ela deverá ser tanto inspiração como expiração); 3. a de que mais que uma Queda ou uma Elevação (ou uma Salvação), a poesia é um caminho na direcção de um horizonte indefinível.

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