O título da mais recente colectânea de A. Pedro Ribeiro enviou-me para uma tal de «poesia diurética», expressão usada por Luís Adriano Carlos na introdução a Alegria do Mal, reunião da obra poética de José Emílio-Nelson. Todavia, a poesia de A. Pedro Ribeiro, ainda que declaradamente abjeccionista, nada tem de diurético, procurando antes os caminhos do manifesto, de uma notória obstinação e de uma disfarçada abnegação. Um Poeta a Mijar, editado pela Corpos, surge depois de Saloon, um volume saído nas já clássicas Edições Mortas. Muita matéria os liga, até porque a forma descarnada como A. Pedro Ribeiro se expressa não dá lugar a grandes desvios, inflexões temáticas ou inovações de conjunto. O que é curioso notar é que estes poemas-manifesto, nessa sua forma descarnada, apresentam-se-nos também como um disfarce, o disfarce do poeta maldito autoproclamado, aquele que rejeita as cátedras não porque nada tenha que ver com elas mas porque nada quer ter que ver com as mesmas, o anónimo que opta por trabalhar apenas dois dias por semana para poder passar o resto do tempo a «pensar, criar, partir a loiça» e «observar discretamente / o balançar de ancas da vizinha». O tom não é tanto de galhofa como parece ser de insurreição, é um tom que se manifesta cruamente na consequência de retratos sociais e ilações morais fundamentadas na experiência dos dias, na vagabundagem intelectual, no estilo pouco fundamentado da gente mais comum: «a vida é uma merda». Entram o futebol, a televisão, o euromilhões, os casos políticos, a Internet, os telemóveis, a polícia, como marcos de uma vertigem social e de uma alienação colectiva que o poeta traz para a sua poesia num sentido meramente crítico e purgativo. A par destas expurgações, o sexo, o álcool, a música, aparecem enquanto metáforas vivas e vividas de uma vontade de escapar ao que se julga ser o fado alienante da maioria dos portugueses. A existir uma poesia pop, esta é uma poesia punk. E, tal como no género que os The Sex Pistols imortalizaram, a música é a da celebração da guerrilha, da vontade, do motim, do desvio enquanto caminho possível, enquanto fuga possível, enquanto atalho para uma vida menos morta ou, se quiserem, para uma morte mais vivida. Um poema mais longo, A Ilíada de Velvet, assim como os exercícios em prosa automática intitulados Borboletas, Ode a Jim Morrison, Satã Comeu a Cortesã e O Meu Reino Não É, ou mesmo os dois apontamentos micronarrativos Rock N’ Roll e A Valsa da Elsa, são textos paradigmáticos dessa postura que uns considerarão antipoética, outros julgarão gratuita, alguns tenderão a classificar de panfletária. Quanto a mim, prefiro ver nestes cantos um grito espontâneo, um ruído que nos aproxima daquela loucura que nos salva da normalidade, a atrofiante normalidade dos dias. Prefiro ver nestes cantos, e na voz escalavrada do poeta, um alívio instintivo. Este é, sem dúvida, o livro de um poeta a mijar, de um poeta a aliviar-se dos detritos agressivos que o enchem, incham, infectam no decorrer dos dias. Não é um livro simples como possa parecer. Nenhum livro é simples como parece. É um livro informal, onde a experiência aparece incorporada numa mescla de denúncia, teatro grotesco e eucaristia festivaleira. Não é mais um livro com um programa satírico, de escárnio e mal dizer, não é irónico nem deixa de o ser, não é diurético e, mesmo que possa relevar inclinação abjeccionista, não é de carimbar com ismos e de colocar nas prateleiras ao lado das centenas de livros classificados e classificáveis que diariamente chegam às livrarias. Porque este é, sem dúvida, o livro de Um Poeta a Mijar: «O poeta dirige-se à casa de banho e mija / Sim, porque os poetas também mijam e cagam / Não passam a vida a escrever versos e a apurá-los / Não passam a vida a fazer horas / E a aturar chatos no café / Não andam sempre a micar as meninas / para lhes oferecer poemas / Com fins libidinosos. // O poeta dirige-se à casa de banho e mija» (p. 36).
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