segunda-feira, 26 de maio de 2008

DESOCULTAR O ÓBVIO

No ano passado a Palma de Ouro foi atribuída ao filme 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, da romena Cristian Mungiu (n. 1968). O “hiperrealismo” do título faz justiça ao filme em si, uma abordagem ao aborto clandestino na Roménia comunista. A história decorre em 1987. Duas estudantes universitárias, Ottila e Gabita, resolvem recorrer a um tal de senhor Bebe para colocar fim à gravidez indesejada de Gabita. Além de dinheiro, Bebe exige que as duas amigas se prostituam com ele. O segredo entre ambas deixa de ser apenas o aborto de uma para passar a ser aquele acto de prostituição das duas, centrando-se o argumento na angústia de Ottila, claramente mais matura e esclarecida, e na sua dificuldade em lidar com a situação e, posteriormente, com o namorado. Várias questões de ordem ética e moral são ilustradas no drama de consciência que afecta Ottila, mas, à margem da própria história, ou talvez nem por isso, há uma cena que marca o filme. Um plano de Ottila ajoelhada na casa de banho do quarto onde o aborto é realizado. Ottila olha fixamente, num misto de tristeza e nojo, para o chão. Sabemos o que ela olha, mas não acreditamos que nos vá ser mostrado o objecto do seu olhar. Enganamo-nos. O que há de espantoso naquela cena é o facto de num filme onde a sobriedade é extrema sermos confrontados com a imagem de um feto expelido, embrulhado numa toalha, sem que nada o fizesse prever. Vivermos num mundo onde tudo se mostra transformou a arte, em certa medida, num saber da ocultação. Enquanto noutros tempos a arte foi sendo assumida como um dom de desocultação, decifração, revelação, agora parece fazer mais sentido o contrário, através de técnicas várias onde o segredo para mostrar melhor está, precisamente, em não mostrar. Cristian Mungiu resolveu mostrar-nos algo que, provavelmente, nós não esperaríamos ver, criando assim um inesperado efeito de surpresa. É curioso: noutro filme aquela cena talvez parecesse ridícula, neste não.

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