sexta-feira, 13 de junho de 2008

AS CANTINAS

Fernando Pessoa nasceu há 120 anos. Malcolm Lowry nasceu há quase 100. Consigo imaginá-los juntos numa taberna de Cuernavaca. Pessoa a beber absinto, Lowry a afogar-se em tequila. Viveram ambos debaixo de um vulcão, cada um no seu tempo, afectados pelas idiossincrasias da História, as susceptibilidades da alma e as disposições do corpo. Há algo de comum entre os dois, algo de muito forte e inexplicável - não só o terem desaparecido com 47 anos de idade. Refiro-me a algo que escapa aos pormenores subjectivos da existência, algo que talvez seja apenas do domínio dos astros ou então produto das conjecturas rebuscadas do leitor. Leio As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar, volume seleccionado e traduzido pelo poeta José Agostinho Baptista, e não consigo evitar aquele espanto infantil de quem vislumbra acasos, coincidências, um caos impartilhável – caso contrário deixaria de ser caos - entre duas vozes distantes no espaço e no tempo. Já sabemos que Lowry nasceu na Inglaterra em 1909. Uma cronologia disponível no final desta colectânea informa-nos que publicou os primeiros escritos no jornal do colégio onde estudou. Viajou muito, diplomou-se em literatura inglesa, sofreu alguns desgostos de amor. No ano em que Pessoa morreu, Lowry foi internado para uma primeira de muitas curas de desintoxicação. No México escreveu um dos mais assombrosos romances do século passado: Debaixo do Vulcão. A vida algo errante, excessiva, aguentou-se até 1957. Ficaram-nos os escritos. Nos dez poemas coligidos em As Cantinas encontramos um ambiente de desolação e de desesperança, homens destroçados pelo medo e pela solidão, afogando as mágoas em tequila, fazendo dos bares e das tabernas um santuário onde esperança alguma se ilude e realiza. Os bêbados dos poemas de Lowry trazem a morte tiquetaqueando no coração, não são uma resistência autodestrutiva à impossibilidade de se integrarem na textura social que despreza o espanto, que arruma a loucura em conceptualizações suturadas segundo manuais escolasticamente elaborados. Estes bêbados não confrontam sequer a morte, por saberem inglória qualquer oposição ao essencial. Eles bebem a morte, abraçam-na como uma inevitabilidade que aclara a existência. Bebem de um modo existencial, «sedentos de desastre» (p. 13), porque «a única esperança é o próximo copo» (p 21). Acompanhem os poemas na versão original, tentam capturar-lhes a música que se perdem na versão portuguesa. Poderão aí encontrar a cadência de quem se questiona mesmo na pretensão de questionar. É um jogo também pessoano que vem de trás, que aqui parece desenrodilhado pela crueza dos aforismos, por tornar tão evidente a ausência de uma luz, ainda que perecível, no caminho de quem já tem dificuldade em descobrir algo de humano no homem que assim se arrasta. Seguem-se os Outros Poemas do Álcool e do Mar. A imagem de um rio seco é a imagem de um sentido que se perdeu. Num poema que nos remete para Debaixo do Vulcão o verso não pode ser mais objectivo: «Não haverá amanhã. O amanhã acabou» (p. 37). Os poemas aparecem povoados de fantasmas, de mágoas e de agonias, amarguras, vagabundos caminhando sem sentido, um lirismo minado pelo desespero, pela impiedade, pelo caos e pela indolência. Os fantasmas que povoam estes poemas são os destroços desse lirismo, são a nossa tragédia dita com a raiva de quem já deu um passo para dentro do abismo. Aqueles fantasmas não são aparições de um tempo passado, são uma projecção presente do nosso futuro, são o futuro a perseguir quem vive debaixo de um vulcão, no inferno agonizante dos sonhos impossíveis. Há um poema que me toca especialmente. Chama-se Felicidade. Lowry enuncia um conjunto vasto de fenómenos belos, aprazíveis, aparentemente consoladores: «Montanhas azuis com neve e água azul, fria e turbulenta - / Um céu selvagem repleto de estrelas que nascem / E Vénus e a lua quase cheia quando o sol, nasce» (p. 53). Isto e muito mais é a felicidade, mas isto e muito mais é também o fundamento de uma dor. A dor de que tudo isto perdemos, a dor de andarmos perdidos entre tudo isto, a dor de sermos impossíveis. Daí que o poema termina com uma questão: «Meu Deus, por que é que nos deste tudo isto?» (p. 53). A impiedade divina é cruel, somos insectos nas mãos de um Deus indolente. Tudo isto é a razão da nossa angústia, a felicidade angustia-nos. Não há lugar para a alegria nos poemas de Malcolm Lowry. Talvez por isso, não sendo um dos meus poetas, seja um dos meus poetas. Volto a lembrar-me de Pessoa.

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