segunda-feira, 28 de julho de 2008

NO VALE DE ELAH

O Primeiro Livro de Samuel é comummente apresentado como “uma reflexão histórico-religiosa sobre os sinais dos tempos (…) e sobre a realidade de misérias, pecados e grandezas, à luz da aliança de Deus com os homens e vice-versa”. Nele encontramos a célebre narrativa de David e Golias. O primeiro era o mais pequeno dos filhos de Jessé, guardava o rebanho, tocava harpa e fora escolhido por Deus para rei de Israel. Certo dia, os filisteus desafiaram o exército israelita. Os israelitas acamparam num monte do vale de Elah e prepararam-se para a batalha. Do lado dos filisteus, um gigante de três metros de altura chamado Golias incitou os israelitas a escolherem alguém que pudesse lutar contra ele. A provocação durou 40 dias, até que David, o mais pequeno dos filhos de Jessé, ofereceu-se para combater o gigante. Impregnado de fé, venceu o medo, pegou em cinco pedras e avançou na direcção de Golias com uma funda na mão. Golias não o tomou a sério, mas David arremessou-lhe uma pedra que ficou cravada bem no meio da testa do gigante. Golias caiu e David, com a espada do próprio, cortou-lhe a cabeça. Nisto, os israelitas perseguiram os filisteus e foram deixando os seus cadáveres a juncar os caminhos que levavam a Charaim, Gat e Ecron. Verdadeira ou ficcional, pouco importa. É uma história que se conta para adormecer crianças. Assim o faz Hank Deerfield (Tommy Lee Jones), personagem central de No vale de Elah, o magnífico filme de Paul Haggis, realizador de um não tão estimulante Colisão (2004). São muitas as batalhas travadas neste vale. Tommy Lee Jones, sempre impecável, é mais uma vez recrutado para fazer papel de investigador. Polícia militar reformado, procura o filho desaparecido depois do regresso do Iraque. Diversas questões de índole política fazem sombra ao filme, nomeadamente os traumas consequentes da participação na carnificina que ainda hoje perdura naquele inferno na Terra. As mazelas psicológicas que assolam os soldados regressados, os traumas de guerra, a completa perversão de valores que anula as fronteiras entre o bem e o mal, a indiferença com que aqueles homens passam a olhar o horror e a total banalização da violência, a ponto de se tornar aceitável nas cabeças de quem vive dentro dela, são algumas das questões que emergem no vale de Elah. Mas, como disse, muitas são as batalhas travadas naquele vale. Mais que todas as outras, toca-me especialmente a batalha travada entre o personagem interpretado por Tommy Lee Jones e as suas próprias convicções. Pareceu-me que o que ali estava em causa era o problema da verdade, a verdade de uma história, por exemplo, como a de David e Golias, a qual está dependente da nossa fé. Talvez a verdade esteja sempre dependente da fé. Talvez não. Talvez esteja antes dependente da experiência marcante que é sentir, como um punhal a atravessar-nos o peito, a nossa própria verdade romper-se perante o gume afiado da realidade. O homem acredita na pátria, acredita no exército, acredita que há um fosso a separar os bons dos maus, mas tudo aquilo em que acredita é posto em causa quando se confronta com o corpo despedaçado e carbonizado do filho, um corpo que escapou às pedras dos iraquianos mas não escapou à perversão dos soldados americanos que regressaram da guerra transformados em autênticas máquinas de matar. A realidade abala todas as convicções, subverte os ideais, transforma em pó, em barro, em terra o que antes era a brisa metafísica das supostas verdades absolutas. Quem sente este confronto com as suas próprias verdades jamais poderá meter fé nos absolutos. É esta a mais importante batalha travada no vale de Elah. Golias está dentro de David, é a sua verdade absoluta desafiando a fé, o medo, a coragem, tudo o que se mistura no coração de um homem que julga que o mundo pode ter a configuração de um sonho maniqueísta. Nunca o dia precisou de excluir a noite para ser dia, sempre o crepúsculo foi, ainda que na sua natural efemeridade, a mais eloquente manifestação da verdade, a tal verdade que estará sempre para lá das convicções de quem acredita em mundos a preto e branco. Porque os homens, definitivamente, não são ostras. Embora alguns se assemelhem ao molusco, a ponto de quase não se distinguirem uns dos outros.

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