Há uma nova geração de vozes poéticas portuguesas no feminino à qual é preciso dar outra atenção. Penso em autoras como Filipa Leal (1979), Joana Serrado (1979) e Catarina Nunes de Almeida (1982), todas elas com livros que denotam passos seguros no resvaladiço território da poesia. Contra mim falo, apanhado de surpresa que fui recentemente com o terceiro volume de poemas da primeira das supracitadas. Não li os anteriores Talvez os Lírios Compreendam (2004) e A Cidade Líquida e Outras Texturas (2006), mas o mais recente O Problema de Ser Norte (2008) deixou-me com vontade de partir em busca dessas colectâneas. Trata-se de um volume breve, com menos de trinta poemas, alguns dos quais em registo epigramático. Está dividido em três partes, iniciando cada uma delas com uma arte poética a traçar as linhas condutoras de uma poesia que ecoa alguns aspectos de outras vozes assumidas pela autora como influentes na sua escrita: as mais óbvias, até por terem sido estudadas num mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros, serão Adília Lopes, Jorge de Sousa Braga e Alexandre O’Neill. Mas há algo nestes poemas que os afirma na sua singularidade. Também aqui vislumbramos uma inclinação para o informalismo, uma vontade de olhar os lugares do quotidiano com os olhos indomesticáveis de quem logra encontrar motivo de reflexão e de poesia onde outros não encontram senão a vulgar banalidade de todos os dias. Na primeira parte, o poema que dá título ao livro revela-nos uma linguagem a pender entre o narrativo e o reflexivo. Praticamente todos os poemas aparecem marcados por este balanço, tornando-se isso manifesto no uso recorrente do verbo ser conjugado no pretérito imperfeito do modo indicativo: «Era um verso com árvores à volta» (p. 11); «Era uma árvore que dava todos os frutos» (p. 20); «Era uma linha fonética no vidro» (p. 21); «Era uma ideia emotiva» (p. 27); «Era uma aldeia sem luz» (p. 32); etc.. Não se julgue, no entanto, serem estes poemas narrativas breves disfarçadas de poesia. Não contam propriamente histórias, indicam-nos antes o motivo das reflexões que desenvolvem. De certa forma, desnudam os processos do pensamento, restituem-nos os objectos poéticos, mesmo quando a poesia se torna objecto de si mesma, lançando-nos no caos divagante de quem pensa à flor da página. Temos a problemática relação entre a poesia e a natureza numa espécie de incompatibilidade que a própria natureza da linguagem instaura: as árvores são a paisagem, a poeta o meio através do qual a paisagem chega à página, o verso é já uma adulteração da paisagem, ainda que a paisagem esteja, de alguma forma, dentro do verso. Haverá fronteira entre a natureza da linguagem e a natureza ela mesma? Tocam-se talvez no silêncio, num «hálito branco», nunca num olhar subjectivo que é sempre e tão-somente uma entre muitas formas de entender o mundo. Para lá desse olhar subjectivo, o mundo permanece inacessível. Mas o que há de mais belo nesta poesia é a ideia do poema como um lugar de afectos, e a forma delicada como esse lugar aparece por vezes disfarçado numa ironia que coincide com uma tentativa de organizar o mundo a partir da representação das suas carências. Não resisto a citar na íntegra o excelente poema Teve Nessa Tarde Uma Criança: «Teve nessa tarde uma criança / desconhecida a segurar-lhe na mão. / Uma criança agarrada com força, uma criança / que apanhou em flagrante a sua mão vazia / e a ocupou como território de criança. / O dia começara assim: primeiro o rio, depois o verde / no terreno da família, agora o mar. / Foi na terceira tentativa que encontrou a criança, / criança a encontrá-la de repente, quando ia caindo / o sol. Criança possessiva agarrada à apatia desse dia / rimado: criança rima com esperança, criança rima. / E ela tão sem linguagem, tão sem versos possíveis, / tão sem a criança anterior. Foi na terceira caminhada, / quando a incerteza parecia cada vez maior, quando / o pensamento não acompanhava o passo decidido / junto à marginal, quando o pai da criança lhe falou / no perigo de dar a mão a estranhos, sem entender que / o verdadeiro perigo / era a mão outra vez vazia de criança» (p. 16). Há neste poema um gesto afectivo que suspende o pensamento, suspende a linguagem, um gesto afectivo que transcende o lugar da natureza nos domínios da comoção. O poema regista o gesto, não é o gesto, pode apenas ambicionar a representação efémera de um gesto marcante. A maior parte das vezes, os poemas de Filipa Leal parecem recomposições da fragilidade dos afectos no mundo de todos os dias. Bem pode afirmar que «a melancolia é uma questão de falta / de tempo» (p. 19). Ficaremos sempre sem saber, enquanto actores melancólicos de um mundo sem tempo, se ela não será antes uma emoção que denota a consciência do medo que ainda temos de sentir, esse medo que expressa invariavelmente a terrível presunção de uma solução, mesmo que ela seja, fosse isso possível, «o fim do pensamento».
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