No século XVII, o filósofo René Descartes (1596-1650) tentou conceber um método que o ajudasse a resolver todos os problemas levantados pelo espírito humano. Toda a gente terá ouvido falar na obra onde esse método apareceu delineado nos seus preceitos essenciais. «Chama-se método à ordem que o pensamento deve seguir para chegar à sabedoria e em conformidade com a qual ele pensa, uma vez que aí chegou» - informa-nos Étienne Gilson, na introdução a uma das melhores edições do Discurso do Método, de René Descartes. À obra do filósofo francês, o poeta Nuno Rebocho (n. 1945) pediu emprestado o título para a sua mais recente colectânea de poemas. O gesto pode ser tomado como uma mera provocação, vazia de sentido e sem qualquer intencionalidade. Mas não é. Percebemos isso ao lermos os poemas coligidos neste volume, nomeadamente o último. Devo dizer que só por este poema, um poema-sequência, como muitos outros neste livro, já valeria a pena a leitura deste O Discurso do Método. Não resisto a citar a primeira parte na íntegra: «e recomeçamos. sempre recomeçamos porque há / um método dentro das sensações ou talvez devesse / haver e haver um método para descobrir esse método. e / descobrindo nos descobríssemos e seríamos ordenados / razoáveis ou como diria a minha amiga – pegaríamos / o touro pelos cornos. mas falta o método para abrir / a lata de todos os métodos e para dormirmos descansados / sem o risco de desgastar o corpo na água dos rios / que vão correndo e desgastar a alma dentro do corpo: / dizem que é assim que oxigenamos o sangue. então que / seja. por isso sempre recomeçamos em busca de um método» (p. 66). Entre Descartes e Rebocho muita água correu nos rios do tempo. A filosofia do conhecimento foi evoluindo na direcção de um caos ametódico, ou de uma metodologia caótica que fez as graças de alguns epistemólogos menos amigos da razão. Nem por isso deixaram de ser filósofos e de pensar com o pensamento que os permite pensar coisas tão ametódicas como, por exemplo, a poesia. Rebocho diz que falta o método para abrir a lata de todos os métodos e, dessa forma, podermos dormir descansados. Talvez haja neste livro essa tentativa, uma tentativa humilde, de abrir a lata de todos os métodos. A pergunta impõe-se e lança-nos numa raciocínio tautológico sem solução: qual o método para descobrir o método que nos ajude a abrir a lata de todos os métodos? Métodos há muitos. E há um, ao qual é costume dar-se o nome de poesia, que ousa colocar-nos no epicentro de uma guerra, de uma batalha, que é a guerra da linguagem. O poema é sempre uma cifra, mas está na sua constituição paradoxal ser uma cifra que decifra. As palavras que compõem o poema, organizadas na sua sintaxe muito particular, oferecem-nos ao mesmo tempo a realidade cifrada num ritmo e em imagens que, de algum modo, nos ajudam a decifrar a nossa própria natureza. O que é o método aplicado à poesia? O que é a poesia aplicada enquanto método? Talvez a “fala das emoções”, uma dissertação ferida, mas ferida como algo que vive, por uma ruptura. Talvez uma certa forma de conhecimento. Ou, pleo menos, de reconhecimento. Na poesia, pela poesia, o pensamento (re)conhece de uma outra forma, de uma forma livre, desembaraça das premissas lógicas e racionais com que olhamos o mundo. Com que lógica podemos olhar o amor? Com que lógica podemos olhar as cerejas, as aves, a montanha e a planície, as borboletas, as papoilas, os eucaliptos, o mar? A natureza aparece aqui como o corpo admirável de uma linguagem muito própria e secreta, talvez inacessível através dos métodos da razão, mas decifrável pelos métodos da emoção. Daí que o poeta conclua: «como fazemos para penetrar nos segredos? abrimos / as portas dos sentidos pelas quais chegam as novas / dos desertos. companheiros: se a palmeira nasce / dancemos a alegria porque cada tâmara é um segredo / bem guardado para nos bater à porta dos sentidos» (p. 73). Contra a lucidez, bebamos então as palavras do poeta, entremos destemidamente no bateau ivre sem outro método que não seja o de uma respiração sorridente e renovadamente espantada com o «mar para lá dos limites».
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