A 4 Águas Editora surgiu recentemente em Tavira e tem como directores Fernando Esteves Pinto e Vítor Cardeira. Estreia-se com um jovem autor da região, Pedro Afonso (Faro, 1979), sendo política da casa, se bem percebi, a intenção de dar continuidade à publicação de autores algarvios. É inquestionável a vitalidade literária daquela região. Lembro, sem pretender ser exaustivo, que nasceram no Algarve António Ramos Rosa (Faro, 1924), Teresa Rita Lopes (Faro, 1937), Casimiro de Brito (Loulé, 1938), Gastão Cruz (Faro, 1941), Lídia Jorge (Boliqueime, 1946), entre outros. Mais recentemente, o aparecimento de grupos como o Sulscrito, com várias actividades desenvolvidas, entre as quais se destaca a edição da revista com o mesmo nome, ou o Texto-Al, ainda em fase muito embrionária, tem incrementado o aparecimento de diversas vozes que, de outra forma, dificilmente se mostrariam para lá das fronteiras regionais onde ecoam com relativa visibilidade. Afecto ao primeiro grupo, Pedro Afonso havia publicado em algumas antologias textos dispersos nos quais não vislumbrávamos qualquer unidade temática ou de sentido. A vantagem de o lermos em livro é, pois claro, a possibilidade de percebermos com maior clareza os tons da sua voz poética, arriscando, desse modo, o tracejar de algumas linhas essenciais que nos orientem no labirinto da sua poesia. Lido e relido ainda aqui este lugar, fica-nos a sensação de uma poesia em construção, por vezes perdida num hermetismo algo fastidioso e demasiado deslumbrada com as potencialidades fonéticas de uma linguagem declaradamente metafórica. A fotografia da capa sintetiza com uma simplicidade comovedora o que os poemas, na sua generalidade, embaraçam inutilmente, dificultando com frequência a leitura a um ponto de inevitável saturação. Nela vemos uma velha cadeira isolada numa duna. É uma cadeira de madeira, em ruínas, cuja sombra se estende pelo areal, secundarizada pelas pegadas de um ser que não vemos. Se há algo de invulgar na presença daquela cadeira naquele cenário, mais invulgar ainda se tornam aquelas pegadas na areia, sugerindo a presença de um ser que, porque não o vimos, parece ausente. Mas parecer não é ser, pelo que diríamos bem presente, pelo menos nas marcas que nos são dadas a ver como se fossem vestígios, aquilo que, apenas em aparência, está ausente. Nas quatro partes que compõem ainda aqui este lugar, é esse jogo entre o presente e o ausente que se destaca. O tempo, sempre o tempo, aparece como o palco transfronteiriço desse jogo multiplicado em 4 níveis interligados: o da delimitação da infância, zona de memória, agora rediviva como uma «sombra / que se deixa atrasar» (p. 15); a construção de uma moradia, sublinhada pelo uso exaustivo do advérbio de lugar presente no título: «aqui / onde a toda a gente é permitido / viver para sempre» (p. 21); o embelezamento dessa moradia com o tratamento de um jardim muito pessoal, o «jardim predilecto de cada um» (p. 35); e, por fim, a consciência do tempo como uma espécie de manto que oculta o que nos cabe procurar/desocultar: «assim procuro debaixo das minhas / raízes onde cotão e memórias crescem / mas nada por lá está onde é possível ver» (p. 47). Não se trata de descobrir debaixo da areia o templo perdido, trata-se de predispor o olhar para um encontro com tudo o que não é óbvio à percepção imediata, trata-se, talvez, de encontrar o que é naquilo que foi. Fica este pequeno volume completado com um conjunto de poemas intitulado Boca Brusca, título herbertiano por excelência. Uma nota à margem dos versos: tratando-se de poemas não numerados, escritos em minúsculas e sem qualquer tipo de pontuação, impunha-se um cuidado gráfico que evitasse confusões. Digo isto porque se a ideia era distribuir um poema por página, o que torna compreensível a diminuição dos espaços entre linhas no poema da página 63, as estrofes das páginas 68 e 69 parecem constituir um e o mesmo poema sem que nada o garanta. Curiosamente, quanto a mim, trata-se do melhor poema deste livro, um poema que consegue evitar o hermetismo cansativo e ultrapassado de estrofes como esta: «nas entranhas do brilho também trabalham ácidos / ponderadores / e formam cavernas de joelhos ásperos já / húmidas inacabadas / vertem linfas que precedem a luz / do romper dos poros / na aridez da fricção cutânea» (p. 61). Desconhecendo o itinerário que esta poesia venha a adoptar, cabe-me confessar que prefiro outros caminhos: «à mesa o café solta um fio de fumo / a colher inútil o prato escusado / a sombra da mão que segura o cigarro / acorda-me do sono do fumo que sonho / a corda ou o fio de fumo que foge» (p. 68).
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