sábado, 18 de outubro de 2008

BROTO SOFRO

O 21.º título da editora Averno intitula-se Broto Sofro. Foi escrito por Jorge Roque e ilustrado por Guilherme Faria. Sobre este volume, como seria previsível, escreveu António Guerreiro, no Expresso. Não li. Mas li Broto Sofro, li-o uma segunda vez e uma terceira hei-de ler. Cheguei por mero acaso aos poemas em prosa de Jorge Roque. Foi numa livraria onde encontrei o opúsculo O chão serviu-lhe de céu (Edição do Autor, 1999) pela módica quantia de 50 cêntimos. Em 2004 voltei a encontrar o autor, já na companhia de Guilherme Faria, num menos interessante, porque algo óbvio, Senhor Porco (&etc., 2004). Sem surpresa, reencontrei-o no n.º4 da revista Telhados de Vidro – da qual tem sido colaborador assíduo. É pois na casa do Inferno que esta poesia encontra acolhimento. Olhando as figuras de Guilherme Faria, facilmente o compreendemos. Lembram as Pinturas Negras de Goya. Figuras de um sofrimento brutal, solitariamente expostas sobre um fundo negro, sombrias, carregando o peso de uma deformação à qual podemos dar os nomes de dor ou loucura (no que ambas tenham de confundível). São figuras atravessadas por um tronco velho, uma espécie de abandono ressequido que as força e lhes dá forma. São a raiz que cresce e se desenvolve em torno de um corpo fantasmagórico. É esse corpo fantasmagórico que encontraremos no “caderno preto” de Jorge Roque. Os tons são negros: «Cor do luto, cor do mudo, cor de não ter cor (peso extremo de tanta luz esmagada)» (p. 7). Os pilares que sustentam a prosa são recorrentes nos autores da casa: solidão, dor, tristeza, morte, etc.. As pequenas prosas de Broto Sofro não nos cativam pelo que possam ter de novo. Nada nelas é novo. São prosas que nos cativam antes pelo que têm de radicalmente negro. Nelas o riso é a ausência do riso, o choro é uma secura dolorosa, a vida é uma raiz que cresce para a morte, o corpo é uma coisa que nasce de uma ferida, é o prolongamento da ferida, a dor é uma nódoa indisfarçável, impossível de apagar, a distância tudo separa e não há remédio que a combata, o silêncio é a forma da boca, só a solidão nos permite não nos sentirmos sós, porque estando todos sós é na solidão que nos encontramos, o choro é como um parêntesis que se abre entre o coração esmagado de uma frase e a sede insatisfeita de uma outra que começa. Alguns poemas são interrogativos no modo como afirmam, outros são afirmativos no modo como questionam. O jogo sintáxico confunde-nos, perturba-nos, pede-nos uma segunda leitura, para que nele nos enredemos com um peixe acabado de ser arrastado pela rede. Somos capturados por estes poemas, porque neles revemos a nossa mudez. A voz destes poemas é a voz da mudez, é a voz de uma alegria engolida pela dor. Que dor é esta? Que causa esta dor? A solidão, a monotonia, o tédio, o riso que se ausenta como alguém que parte para não mais voltar, ou voltar apenas na forma disfarçada de uma inexorável distância. Mas importa lembrar que na poesia portuguesa se acendem demasiados cigarros, embora o cheiro que se levanta da terra assim que caem as primeiras chuvas seja um lugar-comum que aqui se evita. Se a saudade foi ultrapassada pela consciência de uma tristeza sem remédio, de uma melancolia talvez tão anacrónica quanto a saudade, o mesmo não podemos dizer desse tédio que permanece de ceptro em riste a alumiar, como lua cheia em céu de breu, os atalhos da única filosofia que parece possível nestes tempos em que a morte vive dentro da própria vida. Há excepções que confirmam a regra. A poesia de Jorge Roque não é uma excepção, ela apenas não se subsume à regra pelo radical negrume com que nos brinda. Pequenas, talvez insignificantes, subtilezas, tais como os negritos no poema intitulado Nódoa, não podem fazer de nos deixar pensar no risco desta “música triste”. Note-se, por exemplo, a anáfora disfarçada de Espécie de azul: música triste, dia triste, silêncio triste, dor sem grito, azul sobre negro, sobre triste, sorriso sobre ruína, alegria sobre mágoa, palavra triste… Para logo a tristeza continuar na Criança triste «que deixou na infância a parte do sorriso de que precisava para poder iluminar a alegria» (p. 33). Ou os neologismos de Minuto: escavafunda, cegafunda, terrinsiste, ceguinsiste. Devo dizer que desconfio muito do desespero e dos pesadelos, da tristeza absoluta e da morte omnipresente, de destinos dolorosos e das vidas nauseadas, daquela dor que se vem prolongando na poesia como se os males do mundo não convivessem todos os dias com os bens de se estar vivo. E se, de facto, se está vivo, é porque na vida ainda conseguimos vislumbrar esses bens. O bem, por exemplo, da inútil poesia. O bem da bebedeira, o bem dionisíaco, hedonista e materialista da foda, dos dias luminosos de Outono, da música e das paisagens compensadoras. A ruína apenas existe no mundo de quem tem tempo para nela pensar, para nela se concentrar. Tudo o resto não passa da vulcânica mecânica dos dias: nascer para morrer para nascer para morrer para nascer para morrer para… Perante isto, a minha felicidade, enquanto leitor, poderá ser a do tesão momentâneo que me provoca a leitura de um bom livro definitivamente infeliz.

Sem comentários: