«Só o amor cheira a sangue só as cigarras / o perfume das espadas na ossatura dos campos / completam a primavera na vala comum» (p. 48). Estes últimos versos do mais recente livro de Catarina Nunes de Almeida (n. 1982) enviaram-me, mais por defeito meu do que por mérito da autora, para os conhecidos versos de Anna Akhmátova: «A reseda cheira à água, / amor à maçã rescende, / mas agora já sabemos ― / só o sangue cheira a sangue…» (trad. Nina Guerra e Filipe Guerra). O intimismo da poet(is)a russa, dita acmeísta talvez por preferir uma linguagem simples em oposição à complexidade do simbolismo, era trágico. O da jovem poet(is)a portuguesa é erótico. Talvez por isso tudo seja mais simbólico do que claro nesta poesia, tornando-se possível uma outra forma de autenticidade. A Metamorfose das Plantas dos Pés, título já de si claramente metafórico ― porque também nas metáforas, linguagem supostamente sofisticada, ressoa a clareza de um mundo autêntico ―, está organizado por capítulos. São três. E neles vislumbramos um “corpo escrevente” metamorfoseando-se (a evocação da poesia de Luiza Neto Jorge não é ingénua). A poesia é a forma expressiva que nos permite dizer essa transformação, a qual parece inerente à própria natureza da vida. Sabemos disso quando, por exemplo, regressamos a casa no fim de uma tarde de Outono. Olhamos uma réstia de luz a cair por detrás das serras, as quais desenham no horizonte os contornos de um céu que se aparenta a uma página rasgada. Aquele momento único, singular, natural, enleva-nos. A poesia permite expressar esse enlevamento com maior ou menor exactidão, conforme o talento do poeta na escolha das palavras. Primeiro capítulo: o corpo é marítimo, convoca-se a água enquanto elemento simbólico essencial de um corpo que serve de colo aos poemas. O corpo não é «incolor indolor inodoro» como a água, e para ele cai quem escreve sabendo das suas propriedades, como quem sabe das propriedades do corpo amante. Porque tudo nesta poesia, como dissemos logo de início, é erotismo, erotismo simbólico, o erotismo da fusão que permite transformar-se o corpo num outro corpo com o qual se funde, como as sementes que crescem fundidas num ventre, resultantes já elas mesmas de uma outra fusão. O capítulo cresce obedecendo à alternância das marés. Espuma, peixe, conchas, barcas, sal, ondas, algas, têm lugar nestes poemas resolvidos numa metáfora bastante feliz: «Despidos dos rostos dos cabelos / do mundo éramos por fim / a ilha / resistindo à terra que chegava por todos os lados» (p. 15). Porque os amantes são um corpo líquido rodeado de terra, são uma elipse cujo significado pede-nos apenas que o sintamos não porque o procuramos mas porque por ele fomos encontrados. Segundo capítulo: o corpo marítimo, como um mar morto, dá lugar a um “corpo floresta”. Abre-se-nos subitamente o lugar dos serenos passeios de Robert Walser. E com a serenidade de quem ama passeamos entre várias árvores (nespereira, nogueiras... pinheiros e amendoeiras já capítulo seguinte), percorremos os campos, os prados, os jardins, os pomares, olhamos os frutos, as folhas, «as pernas confundido-se com as raízes» (p. 24), acedemos a um mundo primitivo, ao lugar de um primeiro mundo, um mundo desaparecido na linguagem dos homens, tal como a quase desaparecida poesia, que é, mais uma vez, o lugar do amor. Porque de primitivo resta-nos apenas o amor: «Neste canteiro branco no meio de cobertores / o corpo tem o peso da tua semente» (p. 28). A conclusão deste romance, no terceiro e último capítulo, é «a descoberta do fogo». O fogo descobre-se de uma fusão, a fusão que geralmente gera confusão. Podemos discordar desta filosofia de fusões, não podemos fugir à confusão que ela gera. Os nossos corpos não são prolongamentos da natureza, são elementos integrantes de uma natureza mais diversificada do que logra a nossa linguagem exprimir. O enlevo ingénuo com que olhamos o contorno das montanhas num fim de tarde outonal não disfarça a tragédia da nossa sofisticada melancolia, porque de facto desejaríamos ser o que já somos: a lava a transformar-se em cinza, a cinza a transformar-se em pedra, a pedra a romper do fundo do mar e sobre ela crescendo as árvores que darão os frutos que saciarão a nossa necessidade mais básica. Esta fome de natureza não resiste senão contra a própria natureza, dela se alimenta e por isso é muito mais trágica que erótica. Digo eu, que nada percebo da “menstruação da terra”. Embora saiba nela vir a perecer afogado, pois outra não é a natureza da própria natureza: autofagia.
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