sexta-feira, 31 de outubro de 2008

JUKEBOX 2

Jukebox 2 é a sequela do volume que abriu a colecção Poesia Portuguesa Contemporânea, publicada pelo Teatro de Vila Real. Manuel de Freitas (n. 1972), que se estreou em livro com A Noite dos Espelhos (Frenesi, Janeiro de 1999), um ensaio subintitulado Modelos e Desvios Culturais na Poesia de Al Berto, alertava-nos à época para a importância da “contra-cultura musical” na poesia do autor de O Medo. Também nesta poesia a música se revela determinante, não tanto como pautadora de ritmos e fluências discursivas, nem mesmo enquanto interferência ecfrástica mais ou menos difícil de determinar. O que acontece é que a copiosa evocação de músicos, canções, cantautores, bandas, compositores, atravessando estilos e géneros diversos, do fado ao rock, da música clássica ao tango, do erudito ao popular alternativo, demarcam um território muito pessoal de memórias e vivências. Neste livro sugerem diversas vezes recordações fragmentárias de experiências vividas em concertos, pelo que não deixa de ser com súmula comicidade que lemos um poema como Dalai Lama, 2007: «Não comprei bilhete». O efeito acaba por ser compensador no meio de um conjunto de poemas onde o riso não tem lugar senão pela ausência. Mas não larguemos, para já, a música desta jukebox. Tal como sucedia em Al Berto, nos poemas de Manuel de Freitas as evocações musicais servem amiúde de pano de fundo aos bares, deambulações, derivações errantes da urbanidade e da pseudo-urbanidade, quando se trata de retratar a adolescência. No caso específico deste volume os autores evocados são dificilmente descoláveis de uma organização emotiva do passado. Não sabemos se o poeta recorda as situações relatadas a partir da evocação de músicas a essas situações associadas ou se estas músicas funcionam antes como uma fronteira metafórica de um tempo que se perdeu e já não volta. A importância do tempo é, como sabemos, determinante nesta e noutras poesias. Nesta poesia essa importância surge quase invariavelmente na desfiguração de um “agora” que se perde nos tempos passados, fazendo-nos supor uma nostalgia que, bem vistas as coisas, é antes a consciência absoluta da morte que vive dentro das coisas, desse tempo que tudo consigo arrasta. Notemos como no poema intitulado Coil, 1987 o passado aparece desenhado naquilo a que chamei, à falta de melhores termos, uma desfiguração do presente: «Ainda não se falava de home cinema, / danos colaterais ou pedofilia» (p. 10). Noutros casos o passar do tempo é evidenciado por coisas tão exactas como a idade, o fim da adolescência, os anos colectados na transformação do corpo, n’«as lágrimas, de / há vinte anos» (p. 19), nos dez anos que passaram sobre a experiência marcante de um acidente pessoal mas transmissível (v. p. 23), nos «vinte anos depois» do final da juventude (p. 25), na ingenuidade que «tanto tempo depois» foi desfeita pela experiência. O “agora” da poesia de Manuel de Freitas é sempre um “outrora” e vice-versa, num diálogo que parece afundar-se a cada momento sob o peso das palavras, o mesmo peso que sublinha a implacabilidade do tempo e a vertiginosa passagem das horas como medida de uma tristeza essencialmente niilista. No entanto, notamos também, por vezes, discretas inversões de sentido, pontos de fuga, talvez, a um quadro demasiado óbvio, o qual poderia assemelhar-se a um deserto não fosse a mestria com que Manuel de Freitas por lá vai metendo, quais oásis, «uma alegria que até na dor / prevalece e ficou» (p. 7). Rezar «por uma noite / menos escura» (p. 9), mesmo quando ela nos parte e deixa a sós com a morte, com a tristeza, com o amor ou com a vida, o que vai sempre dar ao mesmo, é trazer à ocasião uma vontade de lucrar com o desespero, uma vontade de desmanchar a lamúria com o martelo do desencanto, é certo, mas de um desencanto frio, sóbrio de si, com banda sonora e truques poéticos mais ou menos manifestos: «o pouco sangue / que te viria poluir o álcool» (p. 10); «até nas cinzas encontramos lume» (p. 17); «Só a morte, enfim, nos impede de morrer» (p. 22). E veja-se como no poema Coral Lisboa Cantat, 2007 os tempos se confundem numa pertinente evocação cinematográfica: «Ingmar / Bergman vai morrer amanhã, mas / também isso, afinal, não podíamos saber» (p. 11). A banda sonora que acompanha a poesia de Manuel de Freitas é de um bom gosto inquestionável. Os poemas, esses, são para a voz do tempo cantar.

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