Vi Once (2006) exactamente no mesmo dia em que Bruno Sena Martins escreveu esta pequena nota sobre o filme de John Carney: Para os devidos efeitos, o realismo do screenplay concilia-se com aquilo que há de mais verosímil no romantismo exacerbado. Na verdade, mais que a vocação efabulatória, tanto quanto a nostalgia, é a possibilidade real ou verosímil de uma história que coloniza a subjectividade romantizada. Temos pois um delicioso musical não mais meloso do que tantas vidas submetidas à dúvida razoável ("e se..."). O romantismo como uma dolorosa "hermenêutica da suspeita". A coincidência merece ser apontada, dada a remota probabilidade de voltar a acontecer. Pego nas palavras do texto supracitado para entrar de uma outra forma no filme. Antes de mais, há algo neste “delicioso musical” que o distancia do musical mais vulgar. Repare-se, por exemplo, como as canções surgem sempre em contextos verosímeis e de uma forma absolutamente natural. Ao contrário dos congéneres convencionais, em que a canção, acompanhada fatidicamente de coreografias pouco atractivas para este que vos escreve, surge em contextos improváveis, abrindo uma fenda na plausibilidade da situação, em Once temos um escritor de canções a fazer pela vida na rua, a tocar numa loja de instrumentos musicais, acompanhado ao piano por uma emigrante que, tal como ele, também fazia pela vida nas ruas de Dublin, a gravar em estúdio ou a ensaiar em casa. As coreografias são substituídas por outras danças, talvez menos físicas e mais emocionais. Duvido que se possa apelidar este filme de musical. A sê-lo, é-o de uma forma bem diferente do que até aqui se tinha visto. Será, talvez, um musical realista, um musical dos encontros românticos que acontecem uma vez na vida e deixam a suave marca de uma amizade profunda. Entre o “par amoroso” de Once não se vislumbra o desejo erótico de outros pares, o amor que ali acontece é o de um encontro que une duas pessoas pela partilha de uma paixão comum: a música. Quer ele, quer ela, sentem os corações travados pela vida que está para lá desse encontro. No caso dele, a mulher/amante deixada em Londres. No caso dela, o marido deixado na República Checa. O sexo está fora de questão, mas não o amor, uma certa forma de amor, aquele amor que se confunde tremendamente com a amizade tornada possível pelos interesses comuns. O filme envia-me para a Ética a Nicómaco de Aristóteles. Se bem me lembro, a amizade era aí definida como algo que resultava do afecto que sentimos pelo que é digno de ser amado. Ao amor era atribuída uma dimensão biológica que, de certa forma, o cingia à questão sexual. O prazer que nos é dado sentir em Once é o prazer de um encontro baseado na partilha, no registo dessa partilha na forma de um CD onde ficam gravadas as canções que para sempre unirão este extra-ordinário casal. Ora isto levanta outra questão. No final, os intervenientes separam-se fisicamente. Ele parte para Londres, ela fica em Dublin. A outra questão é: haverá separação nesta distância?
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