Se a memória não me falha, foi mais ou menos aquando dos meus primeiros passos na faculdade que me ofereceram um CD-Rom sobre Fernando Pessoa onde vi, pela primeira vez, um vídeo que haveria de mudar muita coisa na minha maneira de sentir a obra do autor de Mensagem. Para trás tinha ficado a construção de um mito. O Pessoa de que nos falam na escola é um individuo soturno, fechado sobre si próprio, a viver num mundo inventado, é um genial esquizofrénico, uma criança precoce, muito cedo mergulhada na imaginação e no sonho, alheado do real e imbuído nas suas próprias ficções. Ora, no vídeo em causa o barbeiro de Fernando Pessoa falava do poeta como um homem gentil, bem-humorado, que até gostava de contar umas anedotas enquanto lhe aparavam o bigode. Este Pessoa humanizado não nega o outro Pessoa, o mitológico, o poeta das mil e uma personalidades. No entanto, é um Pessoa muito pouco divulgado. Desde que a famigerada arca se abriu, os tesouros não têm cessado de parecer. Só este ano recordo-me de dois que merecem atenção. Contra Salazar, publicado pela Angelus Novus, reúne, como o próprio título indica, textos de carácter político de oposição à então emergente ditadura salazarista. O outro volume a ter muito em conta, curiosamente com relações possíveis ao primeiro, é este magnífico Contos, Fábulas & Outras Ficções. Organizado por Zetho Cunha Gonçalves, este pequeno livro junta textos em prosa saídos da pena pessoana. Tem o mérito de nos mostrar um Pessoa mordaz, irónico, por vezes humorístico, cínico à maneira dos melhores escritores americanos e precursor de uma literatura do absurdo que veio a impor-se durante todo o século XX. À sua maneira, também estes são textos políticos. São justíssimas as palavras de Cunha Gonçalves no prefácio: «tem o leitor em suas mãos um livro irreverente e indisciplinador, um hino à liberdade, e um libelo contra toda e qualquer forma de censura, de prepotência, de submissão e de conformismo» (p. 26). A primeira parte do hino compõe-se de um conjunto de seis contos, nos quais se incluiu a obra-prima intitulada O Banqueiro Anarquista, onde o cinismo é a palavra-chave. A confusão exercida entre os planos da realidade e do sonho/ficção apresentam-se como uma constante geradora do contexto ideal para a prática de uma perversidade narrativa sem limites. Nas duas “crónicas decorativas” são alvo dessa perversidade o academismo e o espírito científico que tudo pretendem esgotar convertendo as coisas imaginadas a um realismo usurpador da beleza que o imaginário lhes confere: «Nada é sagrado para os demagogos de hoje. Que mais pretendem? quanto mais vão ousar? Só lhes falta provar que Cristo foi uma realidade, que existiu o Império Romano, que as lutas políticas da Grécia tiveram lugar realmente. Que mais querem, os novos bárbaros?» (p. 38) Fernando Pessoa subverte os planos, atira o leitor para a confusão, a fábula transforma-se num exercício descritivo da realidade, a realidade não é senão o exercício de ser fabulada. É neste labirinto da Realidade que emergem figuras como a do picaresco Manuel Peres Vigário, o ribatejano a quem devemos a expressão “conto do vigário”, ou todas aquelas das Fábulas Para as Nações Jovens. Situações cómicas que nos remetem permanentemente para esse território aquém das fronteiras que separam o real do sonho: «Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos» (p. 99). As coincidências com algumas linhas gerais da poética pessoana são evidentes, nomeadamente no que essa poética tem de subversiva. A estética modernista foi a única que se erigiu verdadeiramente no crepúsculo, no interlúdio, deixa de existir uma dicotomia entre o material e o ideal, tornando-se a existência numa experiência de tensões e de conflitos apenas superáveis esteticamente. Os três contos de O. Henry traduzidos por Pessoa e incluídos nesta colectânea seguem uma linha similar, reflectem o Real de um modo que lhe permite conferir mais realidade ficcionando-o. Mas o cúmulo desta “filosofia” é o drama estático que encerra este Contos, Fábulas & Outras Ficções. O Marinheiro é um drama sobre a passagem do tempo, sobre o tempo entendido como uma linha contínua onde o passado já não é, o presente já foi e o futuro ainda não é. Na obra pessoana tudo parece envolvido num manto onírico, um manto que repercute a experiência possível da realidade. É a experiência de um homem que olha para as paredes e sente-se observado, porque tudo se confunde com tudo quando, dentro de nós, o tudo é pensado.
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