quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

HISTÓRIAS DE AMOR

2008 ficará na memória dos adeptos da ficção curta como um dos anos mais marcantes na edição portuguesa. Ainda mal o ano tinha começado, já a OVNI dava continuidade às suas leituras à velocidade da luz com a edição de O Espelho Atormentado, de Russell Edson; a Angelus Novus inaugurou a colecção Microcosmos com colectâneas de Augusto Monterroso e de Rui Manuel Amaral; foi lançada a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, pela Exodus; o termo micronarrativa apareceu finalmente nas páginas da imprensa escrita e muitos livros do género foram sendo publicados ao longo do ano. Entre eles, alguns clássicos. É o caso de Histórias de Amor, onde foram coligidas cerca de oitenta narrativas curtas saídas do génio de Robert Walser (1878–1956). Na contracapa somos informados de que o autor terá escrito cerca de mil, devendo-se esta selecção ao trabalho de Volker Michels. Comecei a ouvir falar de Walser, tal como a maioria dos portugueses interessados no assunto, depois do realizador João César Monteiro ter adaptado para cinema a versão que o escritor suíço fez de Branca de Neve. O texto foi publicado pela &etc no ano de estreia do polémico filme, juntamente com mais duas "versões de clássicos infanto-juvenis": a Gata Borralheira e a Bela Adormecida. Posteriormente apareceram em língua portuguesa os seguintes livros do mesmo autor: O Passeio e Outras Histórias (Granito, 2001); O Salteador (Relógio d’Água, 2003); A Rosa (Relógio d’Água, 2004); Jakob von Gunten − Um Diário (Relógio d’Água, 2005); O Ajudante (Relógio d’Água, 2006). Fala-se da influência de Walser em escritores tais como Hermann Hesse, Franz Kafka e Robert Musil, o que é apenas uma forma de justificar a importância de uma obra estigmatizada pelo alheamento público. Walser, assim como Kafka, um dos seus mais importantes apreciadores, foi redescoberto postumamente. É a sina de muitos escritores que parecem escrever para lá das fronteiras do tempo em que lhes calhou existirem. Não exagero se disser que as narrativas de Walser são geniais e este o mais belo livro publicado em Portugal durante o ano ainda corrente. Logo no primeiro conto, simplesmente intitulado Simão, ressalta a excentricidade de uma escrita repleta de observações marginais à situação narrada. O autor interpela-se, trata a história como um organismo com vontade própria, permite que o seu estado de espírito se intrometa e conduza a fluência do discurso, interpela o leitor directamente, brinca com as palavras − «As minhas palavras são como crianças e eu brinco com elas», dir-nos-á no conto A Fraqueza Pode Ser Força (pp. 169-170) −, remata o texto abruptamente: «Como tal aconteceu, será mais tarde contado pela história que, neste momento, tentando a custo recuperar o fôlego, precisa absolutamente de descansar» (p. 11). Walser é de um cinismo implacável quando aborda a tradição romântica, mostra um humor assaz sofisticado e uma ironia nada autocomplacente, desconfia dos grandes romances dedicados a matérias que podem ser sintetizadas em meia dúzia de frases, chega a ser mordaz para com a ingenuidade com que o tema é frequentemente tratado literariamente. E em contos que raramente ultrapassam as duas páginas, muitos nem meia página preenchendo, logra desenhar os traços essenciais das suas personagens sem fugir à ambivalência, ao caricato, ao paradoxo, hesitando e fazendo da hesitação uma espécie de jogo plástico que tudo justifica em matéria amorosa: «Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita» (p. 15). O erotismo destas pequenas histórias parece cómico quando é trágico e torna-se trágico quando é cómico. O próprio autor faz questão de o declarar, seja quando a história aparece sob as formas de carta, recensão ou relato. Entrar nestes textos faz-nos sentir perdidos numa floresta encantada onde a melancolia da paisagem contrasta com os percursos resvaladiços das paixões assolapadas. Há uma volúpia que emerge de cada frase como da terra emergem altas árvores, e o leitor perde-se entre as árvores, debate-se com contradições várias, procura orientar-se sem qualquer tipo de bússola que não seja uma desarticulação clara entre as situações narradas e as conclusões manifestadas pelo próprio autor: «Acho que a história que aqui escrevi é uma história cómica» (p. 186), «Este burlesco texto em prosa deixou-me muito sério» (p. 190). No entanto, este jogo não apaga a ternura com que muitas situações são relatadas, o enternecimento geralmente votado ao amor dos “homens simples” − leia-se o desarmante conto intitulado O Moço de Recados, sobre um “moço de recados ao serviço de um padeiro” que roubava farinha ao patrão “para a levar à mulher amada” −, a denúncia da hipocrisia dos costumes, os conflitos familiares resultantes de moralismos castradores, a ausência absoluta de uma matemática amorosa, a preferência pela discrição em matéria de aforismos sobre o amor e reflexões profundas sobre o carácter dos homens e das mulheres. O que também não nos priva de uma antologia muito pessoal a ser reflectida com mais tempo e mais espaço. Para já, fica apenas a sugestão de um livro ESSENCIAL.

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