domingo, 18 de janeiro de 2009

NÃO ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS


Uma árida, absoluta e incomensurável solidão. Essa a marca de quem nasce ao contrário e, como todos, ruma direito à morte. Morrer porque morrer não tem avesso, é um ponteiro marcando a passagem do tempo, lembrando que é preciso viver a morte antes que a morte nos viva. Se os mestres ensinam num conto ser o absurdo a melhor forma de dissipar as dúvidas de uma árida, absoluta e incomensurável solidão, porque por mais que inventemos hipóteses nenhuma escapará ao jugo da realidade, num filme tudo isso pode ser transformado em telenovela existencial com romances do coração a marcarem o ponto. Limo as arestas ao discurso e penso no breu que tingia Se7en, em como o autodomínio acabou crucificado num arroubo de irascibilidade. Não está nas nossas mãos. Penso na farsa oferecida a Nicholas Van Orton, o bem sucedido empresário com a mais entediante das vidas. Não estava nas suas mãos desmascarar a farsa, tudo lhe parecia escapar para um sem sentido desesperante. Penso no niilismo de Fight Club, em como o vazio pode encontrar uma aparente resolução na prática da violência. Não está nas nossas mãos o que nos rasga os punhos. Penso em Panic Room, nas obsessões com a segurança subitamente desfeitas por um maldito acaso. Não está nas nossas mãos, os acidentes fiscalizam-nos a toda a hora. Penso em Zodiac, uma história magnífica sobre a busca incessante de uma verdade improvável. Improvável porque não está nas nossas mãos chegar à verdade. Queira ela fugir-nos, fugir-nos-á. E agora penso no curioso caso de Benjamin Button, um homem nascido ao contrário dos outros, nascido velho e rumando, como todos os outros, a caminho da morte. Morrerá com um corpo de bebé, nascido que foi com um corpo velho. As obsessões dos filmes de David Fincher evocam constantemente o que não está nas nossas mãos. Neste filme mais recente elas, as obsessões, nomeadamente a obsessão pela vida, evoca a morte, a morte num tiquetaqueado alegórico, é certo, mas ainda assim cruamente realista. Os acessórios técnicos, a caracterização impecável, é apenas um pormenor de quem pode dar-se ao luxo de filmar com recursos. Para lá dos acessórios, mostra-se a vida no que jamais estará nas nossas mãos: a morte. Talvez a palavra destino seja a chave para todos estes filmes de David Fincher, uma chave agora filmada em registo mais sentimental, é verdade, mas não menos irónico que no passado. Porque o sentimentalismo que paira sobre cada cena de The Curious Case of Benjamin Button – do velho que foi atingido sete vezes por um raio à reflexão sobre a possibilidade de um acidente não ter sucedido – é irónico na sua essência. Ele diz-nos de forma ligeira a mais pesada e rigorosa das filosofias: não está nas nossas mãos. Dentro de um cenário destes, ser livre é o quê? Tomar decisões, viver, ou seja, arrancar à morte o gozo de ter experimentado o naufrágio, o prazer imenso, explosivo, das aventuras marcantes. Tudo o que fica, o pouco que está nas nossas mãos, é entregarmo-nos a esse naufrágio. Sentando a alma a olhar o nascer sol, fazendo o corpo ao mar, desbravando o mato do coração. Porque outra coisa não está nas nossas mãos.

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