quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

REPÚBLICA

Platão chegou-me demasiado cedo, com a força de um planeta distante, num texto apologético. Falava-se dele no 10.º ano de Filosofia. Sócrates, objecto do panegírico, parecia uma invenção saída da cabeça do discípulo. Aquilo em que acreditamos ou não é tema central na Apologia de Sócrates. O condenado vê-se desacreditado perante os juízes, o filósofo transforma-se num mártir, entrega-se à morte em honra da maior das virtudes: a verdade. Mas a verdade tem muitas faces, é como a lua. Não admira pois que, em nome de outros bens maiores, Platão acabe por admitir uma espécie de mentira. A mentirinha nobre, apenas admissível aos chefes da cidades – na república ideal seriam os filósofos, quem mais? – era entendida como um benefício em razão da ordem. Abre-se o caminho a toda a espécie de especulação. Platão acaba despromovido, tal como o planeta quase homónimo. Justificar uma espécie de mentira, ainda que lhe chamemos nobre, ainda que lhe encontremos inúmeras desculpas de ordens diversas, justificar a mentira, dizia eu, resulta numa aceitação da hipocrisia retórica que contamina todo o discurso político. «Pode acontecer que os nossos governantes precisem de usar de mentiras frequentes e de dolos para benefício dos governados». Tanto pode que outra coisa não fazem, depois de chutarem para fora da cidade ideal os poetas, esses artífices da ilusão, cambada de aldrabões, que desviam a boa juventude da verdade obnubilando-lhes as vistas com mitos, enigmas, imitações de imitações, metáforas. A condenação da poesia n’A República de Platão devia fazer-nos pensar em todos os artistas vituperados ao longo da história da humanidade pelos poderes que, mais do que buscarem a verdade, procuram impor a sua verdade. Acontece já em Platão, por defeito de princípio, amar-se a verdade na base de um preconceito acerca da própria verdade. Não se chega à verdade definindo-se a priori o que ela seja, a verdade, a existir, tem a constância do inconstante. Novalis dirá tratar-se de poesia, talvez por ser a poesia essa constante inconstância – liberdade livre – o que melhor reflecte a improbabilidade de uma Verdade em prol de muitas verdades. Não se trata de subjectivar o olhar, de esbarrar nos erros cometidos por um relativismo absurdo. Trata-se de aceitar o contraditório como uma exigência de reflexão na busca de algo mais que não seja um mundo parado. Esse algo mais parado, em Platão, chama-se ideia. É o princípio de toda a nossa desgraça. Transforma-nos o corpo numa prisão como se fosse admissível uma liberdade para lá do corpo, como se não devesse ser no corpo, pelo corpo e para o corpo toda a afirmação da liberdade (curiosa a comparação da organização da cidade com o funcionamento do corpo humano). Só a liberdade nos permite ver para lá das sombras o que as próprias sombras contêm já, porque para lá das sombras há apenas outras sombras, as sombras são o que dá sentido à luz, a luz brilha no âmago das sombras. De tanto haver delimitado a perfeição, de tantos muros haver erigido em torno de um território ingovernável, este poeta que se pretendia filósofo para se afirmar governante acabou refém das suas próprias ilusões. A cidade ideal é um monstro que nasce de uma desconsideração por tudo o que seja humano excepto um medo profundo, o mesmo medo que impele para uma concepção de justiça fundamentada em mentiras nobres e improváveis pressuposições. Danosa poesia, “grande perigo”, salva-nos de verdades platónicas, dá-nos imitações e fingimentos que nos ajudem a sangrar o mundo numa palpitação que, apenas e tão-só à hora da morte, expire o seu idealismo a quem aprouver. Prefiro os fantasmas dos poemas, os ludíbrios dos poetas, ao masoquismo presunçoso dos filósofos que nunca souberam senão fabricar escravos de pretensas verdades absolutas. A nós a loucura dos desejos, o frenesi do amor, a nós a embriaguez do prazer, a selvajaria, o deleite que afirma a vida acima de todas as quimeras.

Sem comentários: