segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
COMÉRCIO TRADICIONAL
Há dias vi na televisão uma reportagem sobre o último taberneiro do Cartaxo, um derradeiro resistente a sobreviver, como náufrago numa ilha, na companhia do canto dos canários e dos periquitos engaiolados. Preso ao passado, sem esperança no futuro, o último taberneiro do Cartaxo já não serve a quantidade de cartolas de vinho que servia noutros tempos. Vai ficando atrás do balcão, entretendo-se com quem passa, e explica agora para a TV, transformado numa raridade, as três medidas de vinho que ainda hoje serve a quem lhe frequenta a casa. Ao bater com o vidro dos copos no mármore do balcão, gesto insignificante para uma imensa maioria de pessoas mais habituadas a coca-colas de pressão servidas em copos de papel, o último taberneiro do Cartaxo desperta-nos do sonambulismo provocado por uma contemporaneidade alheia ao serviço afectuoso do chamado comércio tradicional. O meu pai começou precisamente assim, com onze anos, numa taberna do Cartaxo. Diz-me que eram outros tempos, todos se conheciam pelo nome. O chamado serviço personalizado do que ainda vai sobrando de comércio tradicional não passa de um argumento retórico contra a proliferação de centros comerciais que atraem o público com armas ditas comercialmente mais agressivas: dos cartões de desconto à suposta rapidez dos estabelecimentos de fast-food, passando pelos famigerados preços combativos, entre outras armas de igual calibre. Perdeu-se o conforto de uma relação marcada pela familiaridade, ganhou-se em agitação, alvoroço, claustrofobia, pressa. O título da mais recente colheita de poemas de Vítor Nogueira resume um sentimento de extinção que é mais complexo do que aparenta. A sobriedade dos poemas coligidos em Comércio Tradicional pode distrair-nos de algo que me parece muito mais importante do que um mero elogio da tradição. Esse elogio aparece de um modo irónico num discurso que não enjeita a mais comum das desconfianças contra o progresso: «o progresso engole-nos a todos» (p. 12), «o progresso avança em ziguezague» (p. 44). Os remates dos poemas intitulados Benfica e Esplanada chegam a ser picarescos, mas o que neles há de cómico é a simulação do riso. Mais importante que esse suposto “elogio” é, quanto a mim, uma espécie de elegia dos afectos, da dignidade e da generosidade que foram deitadas para o lixo pelo famigerado progresso. O palco deste drama – não lhe chamo drama por acaso – está superiormente ilustrado no desenho de Luís Henriques que honra a capa. Trata-se da Drogaria da Praça, por vezes apelidada de “quartel-general”, superiormente governada por um tal de “farol do comércio tradicional”, mestre-de-cerimónias de uma fauna diversificada que mais não pode procurar do que passar o tempo enquanto o tempo lhes foge. Mas passar o tempo criando laços, aprendendo «a resistir às intempéries» (p. 8). Em redor deste «ecossistema, uma rede infinita / de ligações humanas» (p. 15): o engraxador do largo, o rapaz que tomou a overdose e todos mal conheciam, o cauteleiro, a viúva, a Pastelaria Gomes, a Livraria Branco, os rituais quotidianos mais vulgares, tais como registar o boletim do totobola ou pôr moedas no parquímetro, «pormenores a que não damos atenção» (p. 12) mas que acabam por definir o sentido de andarmos pela vida. Os poemas de Comércio Tradicional ajudam-nos a pensar a relação que estabelecemos com os espaços que frequentamos diariamente. Espaços que assumimos como sendo em parte nossos, mas que estão para lá de serem a nossa casa, o nosso lugar. São, no fundo, lugares de recolhimento onde a intimidade se vai revelando com o desenvolvimento da confiança. Esses espaços estão em vias de extinção, os espaços de uma partilha social da intimidade, pois a tendência é para confiar cada vez menos nos espaços por nós frequentados. O dito progresso económico é indissociável de um retrocesso humano, ou seja, a esse progresso corresponde um decrescimento das relações de confiança entre os homens. Já não se pode confiar em ninguém, diz-se. E com toda a razão. Limitamo-nos a passar pelos tais espaços de sociabilidade como quem podia passar por outro lugar qualquer, sem a mínima intenção de regressar. Passamos à pressa, em silêncio ou rodeados de um ruído ensurdecedor (outra forma de silêncio e de solidão). É esta a elegia que pontua os poemas do livro de Vítor Nogueira, a extinção de «uma forma específica de conhecimento» (p. 14), a extinção dos espaços que se tornam «extensões do corpo e da mente / que reajam às pontas dos dedos» (p. 16).
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