quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

CONFISSÕES

O meu amor é o meu peso.
S. Agostinho

Para quem não esteja familiarizado com a estrutura da obra, convém esclarecer que Santo Agostinho organizou as suas Confissões em treze livros coligidos em duas partes (Primeira Parte: A Infância, Os Pecados da Adolescência, Os Estudos, O Professor, Em Roma e em Milão, Entre Amigos, A Caminho de Deus, A Conversão, O Baptismo; Segunda Parte: O Encontro de Deus, O Homem e o Tempo, A Criação, A Paz). Para simplificar, diremos que a primeira parte é de carácter mais biográfico, tendo sido reservado para a segunda parte o grosso do pensamento metafísico e filosófico constante na obra. No seu todo, as Confissões são um belo testemunho de conversão. Agostinho confessa-se pecador e explica o que o chamou para Deus, para a vida recta e virtuosa ao serviço do Senhor. Para trás ficaram os episódios perversos e ignominiosos da infância e da adolescência. Este santo foi corrupto, invejoso, mentiroso, frívolo, larápio, fraudulento, deixou-se contaminar pelos tenebrosos prazeres da carne, pela concupiscência, pelos vícios de uma vida luxuriante, e confessa-se: «Se tivesse vivido eunuco por amor do reino dos céus esperaria agora, mais feliz, os Vossos abraços» (p. 55). É óbvio que nem todos nascem para santos – durante muito tempo o próprio Agostinho não se terá distinguido, em acto e pensamento, do mais vulgar dos pecadores -, mas este elogio da castração sempre me comoveu. No fundo, ele pressupõe uma contradição que está na origem do discurso eclesiástico: santo é aquele que não procria, embora a mensagem de Deus tenha sido exactamente a contrária. Quer dizer, como entender o famigerado amor à vida, essa obsessão pela continuidade da espécie, ao mesmo tempo que se reclama a abstinência sexual como via para a santidade? Afinal, as delícias da casa Divina, na cidade de Deus, não podem ser comparáveis com os prazeres perversos da ejaculação. Há que conter o esperma, chicotear a tesão, martelá-la até que o grito da dor nos aproxime dos céus. E enquanto se entretinha a roubar frutos, não por necessidade ou para se banquetear, mas apenas para os lançar aos porcos, este malandro amava desavergonhadamente alguns dos seus comparsas. Esse amor está declarado no célebre episódio da perda de um amigo. Um amigo muito querido, íntimo, de uma amizade tão doce que a alma do santo já não podia passar sem o amiguinho. Mas teve que aprender a passar, pois Deus roubou-lho. Que mania esta a dos Deuses apreciarem jovens e belos amigos! Entretanto, as desgraças do santo foram sendo apaziguadas com a libertação do amor às coisas mortais. Também nunca entendi muito bem que outras coisas podemos nós amar senão as mortais. Mas não quero perder-me por aí. Prefiro saltar directamente para o Livro Onze e lembrar-vos o Tempo segundo Santo Agostinho. É a ele que devemos a mais eloquente concepção do Tempo. O problema é complexo se o abordarmos como deve ser, partindo do problema da criação do mundo até chegarmos à questão da eternidade. As conclusões de Santo Agostinho são muito convincentes, até porque deixam em aberto algumas aporias que seria inútil procurar resolver. Nestas como noutras coisas, a fé armadilha-nos sempre o pensamento. Mas há uma questão que não pode ser escamoteada: «Quem pode medir os tempos passados que já não existem ou os futuros que ainda não chegaram? (…) Quando está decorrendo o tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido, não o pode perceber nem medir, porque esse tempo já não existe» (pp. 306-307). Esta concepção metafísica do tempo é muito interessante. Faz-nos pensar no grande ditador (O Tempo) como um contínuo, o que pode ajudar-nos a compreender algumas questões. Nomeadamente o facto de algumas pessoas da Igreja parecerem não ser deste tempo. De facto, não são. Elas são do tempo sem passado nem futuro, são do tempo que sempre foram, de um tempo lá delas que é um tempo sem tempo, sem História, sem as lições que a História pode e deve oferecer, são do «presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras» (p. 309). Elas são hoje o que foram ontem e o que serão amanhã, sem esperança na mudança, com os mesmos preconceitos de sempre, apenas menos concretizáveis, dominadoras e inquisidoras porque, a seu tempo, encontraram a resistência do laicismo e da secularização.

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