segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
A MÃE DE TODAS AS HISTÓRIAS
A Mãe de Todas as Histórias era a história de Adão e Eva, contada pela mãe ao filho pequeno como princípio de uma educação moral que, entre outras funções, tem a de formatar a sexualidade. Entretanto a criança fez-se homem e descobriu outros mitos, entre os quais o do príncipe Ganímedes, raptado por um Zeus que o possuiu em pleno voo. Freud preferiu Édipo a Ganímedes, respeitando assim a moral d’A Mãe de Todas as Histórias. Nem mesmo o pai da psicanálise ousou desfazer os enigmas, preferindo embrenhar-se noutras histórias que vão servindo apenas as convenções que restringem o desejo, a paixão, o corpo, a sexualidade, a uma das suas vertentes. Sirva-nos então a poesia uma visão mais alargada, uma visão mais livre deste mundo dos afectos repetidamente refém de preconceitos dificílimos de superar. Veja-se como tem sido tratada na actualidade a questão do casamento homossexual. Pega-se no assunto com pinças, não vá o vírus contaminar a casta sociedade do bom costume e da tradição. Fala-se em decadência moral e em degenerescência espiritual, fala-se na corrupção do conceito de família, fala-se em perversidade com uma histeria do tipo daquela que a História registou noutras épocas. Em matéria de liberdade evoluímos muito pouco, continuamos herdeiros do ódio de Hera e ignorantemente tementes à normalidade que nos foi servida como às feras se vão servindo as chibatadas da domesticação. Sirva-nos então a poesia uma visão menos limitada, mantenha ela a bestialidade resistente dos poetas que ousam mais do que ousaram os psicanalistas. Outra força não se pode reconhecer na poesia de José António Almeida (n. 1959). A mesma força que havíamos experimentado em O rei de sodoma e algumas palavras em sua homenagem (Presença, 1993), voltamos a experimentar em A Mãe de Todas as Histórias (Averno, 2008). Mesmo quando os poemas optam por uma irónica formalidade, aproximando-se de formas canónicas de versificação – cantatas, canções, cantilenas, salmos, fados, etc. – ou submetendo à rima de feição tradicional a respiração dos versos, eles logram distorcer a aparência das convenções através de um processo de subversão que consiste em trazer a si temáticas muito raramente tratadas. O efeito é o de uma ironia tão desconcertante quão certeira que por vezes se aproxima da sátira social. Sirva de exemplo o poema que dá pelo título de Estranheza: «Os jovens machos usam brinco, faixa / no cabelo, pulseiras e colares, // roupa apertada para sublinhar // essas formas outrora ditas íntimas: // subversão que na minha juventude / era punida com palavras feias. // Estranho é que eles sejam os modernos / guardiães implacáveis e cruéis // porta-vozes dos mesmos palavrões» (p. 79). Estes contrastes avolumam-se numa recorrente evocação de santos - nomeadamente o mártir São Sebastião, padroeiro dos homossexuais -, recordações de aventuras amorosas, «do circo da sedução» e das suas inerentes «ratoeiras» e traições, convocações aparentemente contraditórias de locais de peregrinação (Cova de Iria, Andaluzia - a cidade de Sevilha é referida várias vezes) e prestidigitação (a província ostracista), memórias familiares em tom elegiaco e despudoradas confissões: «Quem veterinário for / que te cure, que eu de santo // não tenho assim tanto estofo» (p. 51). Por vezes muito breves, outras vezes mais longos, os poemas de A Mãe de Todas as Histórias apresentam-se como que sob a forma de orações livres e solitárias de quem sente o peso do mundo a partir de instantes marcados pela ferradura da des-ilusão, amarga e dolorosa ferida sem cura definitiva. As proibições, o secretismo, a hipocrisia, o fingimento, mesmo o amor sonhado, são tratados com sarcasmo porque outra coisa não pode o poeta declarar senão as lições de uma espinhosa aprendizagem: «A pele, se com o tempo ganhou / uma boa textura de crocodilo, / não sofre. Nem há leite derramado / que valha a sério com pena chorar / lágrimas, a não ser de crocodilo / velho, cansado e sentimentalão» (pp. 21-22).
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