Não me recordo do nome do filme. Vi-o há dias mas perdi-lhe o nome e não me apetece procurá-lo. Sei apenas que juntava dois grandes actores, Jack Nicholson e Morgan Freeman, interpretando personagens ameaçados pelo cancro. Com poucos dias de futuro, lançaram-se numa auspiciosa reconquista do passado. Elaboraram uma lista com os desejos que a vida lhes havia roubado e procuraram cumprir o programa à risca. Numa das cenas, encontramo-los sentados com vista para as Pirâmides de Gizé. Freeman conta que os antigos egípcios acreditavam ser necessário responder a duas questões para entrarem no paraíso: foste feliz em vida? Fizeste os outros felizes? Esta cena transportou-me para o local. Voltei a abrir O Livro dos Mortos do Antigo Egipto e fiz a minha viagem até às pirâmides. Quem já esteve naquele lugar não pode deixar de sentir uma grande ambivalência de sentimentos. Entre o caos de uma cidade gigantesca e o silêncio ameaçador do deserto, as Pirâmides de Gizé são um espanto de beleza e grandiosidade. Mas são também a consciência do sofrimento associado à edificação da obra. É impossível olhá-las sem ver ali a exploração escrava de impérios tirânicos, assim como é impossível estar dentro do coliseu romano sem ouvir os gritos dos cristãos lançados à voracidade de leões famintos. Experimento as mesmas sensações contraditórias ao folhear o livro dos mortos. Maria Helena Trindade Lopes apresenta-o como «o mais antigo livro ilustrado do mundo», o que já de si lhe confere um carácter monumental. As quatro partes do livro (excluamos os capítulos adicionais) relatam-nos a viagem de um morto, do cortejo fúnebre até ao mundo subterrâneo, passando pelas fases da regeneração e da transfiguração. O hermetismo dos textos, assim como o ecletismo inerente à sua filosofia, obriga-nos a evitar considerações sempre aquém da complexidade das imagens, dos detalhes, dos pormenores contidos em cada alusão, em cada metáfora, em cada passagem. Prefiro enumerar algumas ideias que o livro estimula. Por exemplo, a ideia da morte enquanto viagem a caminho da libertação. Não se trata aqui da libertação do corpo. Quem visite a sala das múmias no Museu do Cairo percebe facilmente a valorização do corpo que os antigos egípcios cultivavam. De resto, a regeneração (na forma solar) e a transfiguração (na forma da eternidade) não dispensam os tratamentos da carne. O Morto que viaja e fala n’O Livro dos Mortos do Antigo Egipto aponta várias vezes a sua virilidade, é um Morto ainda por morrer, é um Morto em viagem, é um Morto ao qual será devolvido o coração no reino dos mortos. No fundo, é qualquer um de nós neste preciso momento. Alumiado por archotes e perfumado por fumigações de incenso, em Heliópolis ele reencontrará os ritmos da eternidade e da perenidade. Libertaram-no das vísceras excrementícias, tudo o que ele abomina por tão próximas da putrefacção. Há uma moralidade neste livro que me agrada sobremaneira. Há uma afirmação da vida. As fórmulas para vingar na morte não diferem das fórmulas para vingar na vida. Descer aos subterrâneos do Vale dos Reis e do Vale das Rainhas lembra-nos de como o bem se revelava, à época, pela não-prática do mal. O julgamento final, se assim podemos dizer, não mais é do que um inventariar dos males que não se praticaram. Mais que procurar ser bom, importa não ser mau. Como? Não o fazendo, não cometendo a iniquidade contra os homens, não procurando conhecer aquilo que não é para conhecer, não sendo pederasta (sic), não fornicando nos lugares santos do deus da cidade, não apagando um fogo no seu ardor, etc… E por fim, fica a poesia dos hinos, dos cantos, das fórmulas como testemunho sábio sobre o sentido final da existência:
Ora, todo o ser humano é assim, que ele morra como não importa que quadrúpede, como não importa que pássaro, como não importa que peixe, como não importa que verme e como não importa que serpente: aqueles que vivem, morrem.
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