Tenho um segredo para te contar: a chuva que surge das frestas e escorre pelas paredes vem de um tempo longínquo. Não é de agora, este aguaceiro que nos afunda. Todos nós o sabemos, embora nunca nenhum de nós tenha chegado à fonte. Mas se ofereceres à chuva as mãos em concha para depois levares à boca o gosto da água, poderás provar pelos teus próprios lábios o que atravessa o tempo. O amor é uma questão de oportunidade. De nada vale encontrar a pessoa certa antes ou depois da hora certa. Ninguém sabe a hora certa. Ninguém sabe parar as águas. Pensa nos cafés que amanhecem todas as noites com gente lá dentro, sentada ao balcão, à mesa, circulando entre o ruído, desonrando a melancolia. Nos cafés deambula o espírito das cidades, as pessoas com suas histórias pessoais a deslizarem para dentro de um copo, fechando-se no interior dos pormenores que marcam a diferença. Podemos entrar em mil cafés, poucos serão aqueles onde nos apetecerá regressar. Regressamos por causa dos pormenores. Regressamos aos cafés que nos integram nas páginas de um romance que vai sendo escrito todas as noites, sempre que amanhece mais um capítulo na vida que colocamos acima do deslumbramento. Regressamos à banalidade das coisas belas. Algumas passam-nos ao lado, despercebidas, outras revelam-se a meio de conversas inesperadas. Há um tratado acerca do inesperado nos cafés. Ao contrário do que acontece na maioria dos filmes, aqui é a película que entra dentro de nós. Nem vale a pena procurar reconstruir a nossa memória dos lugares comuns: um homem a contas com o passado, a contas com o insucesso no amor, procura esquecer (verbo absoluto) recriando-se, repensando-se, chamando-nos ao lugar mais inexorável dos sentimentos: o lugar do amor; ou então a síntese de um tratado numa tarte que ninguém quer, numa jarra cheia de chaves que simbolizam relações desfeitas, no alcoólico que não suporta a separação da mulher, no vício do jogo, numa rua espreitada através de uma cortina, numa câmara de vigilância que regista tudo o que escapa a quem, por servir atrás de um balcão, promove a câmara à condição de diário. Mas este tratado é transposto. Para lá dos pormenores, as portas que se abrem e que se fecham. Talvez Wong Kar-Wai queira transportar-nos até à fonte do amor. Disponível Para Amar, 2046, My Blueberry Nights, etc., remetem-nos ininterruptamente para os fantasmas do amor, roubando-nos o tempo necessário para uma construção de sentido. Dão-nos tempo para respirar e pouco mais. Imagens e diálogos intrometem-se no pensamento como se fossem, e são, uma aventurosa vida. Em My Blueberry Nights o balcão marca uma espécie de fronteira facilmente transponível entre a catástrofe e a revelação. Alguém a quem a vida parece fugir para a catástrofe pode simplesmente resolver-se pelas portas abertas da revelação. É assim a vida aventurosa. Seguir caminho na direcção do esquecimento, buscar a revelação que tinge todas as mudanças. No caso, essa busca não implica o abandono. Deixa-se para trás uma espécie de poiso, como que um elo que não nos separe em absoluto daquilo que pretendemos esquecer. São assim as aves migratórias. Regressam porque precisam de ver se ainda se lembram de como eram as coisas quando partiram, regressam curadas das feridas que as fizeram partir, regressam porque têm à sua espera quem resolveu permanecer, regressam para poderem voltar a partir, regressam para saberem se chegaram algum dia a partir ou se tudo não passou de uma mera ilusão. E há quem esteja sempre a partir sem nunca sair do mesmo lugar. E há quem espere como se fosse um poiso, o encanto daqueles que retornam numa carta, em corpo, por um cigarro ou, por que não?, por uma mera fatia de tarte de mirtilo. Para trás ficam as histórias vividas, deixadas ao abandono da memória, porque outras não podem ficar para trás. Só mesmo as que foram vividas. Eis a bênção do reencontro, o perfume e a alegria do regresso, descobrir que algo permanece imutável, à nossa espera, enquanto nós mudamos os ângulos à visão, enquanto mudamos as cores ao mundo, enquanto nos fazemos mais nós. Perdoe-se-me o destempero, mas vou citar-me: «Tudo acaba no começo de um novo dia / como um travo que move o crepúsculo do mundo, / como um amargor que nos devora / na sombra do esquecimento. / Como este pérfido canto / que sofre por não ser distante, / por ser daqui, por ser de agora». Tudo acaba, excepto a dor que fica. A dor do amor que não se esquece. Porque o amor não tem tempo, é deste agora sucessivo, deste agora não estático, deste agora em movimento. Um comboio rumo a um futuro imprevisível. Interrogo-me: poderá o amor ser uma hora certa? Será o amor eterno essa eternidade que fica numa hora certa que não se destrói, que é impossível destruir? Sendo assim, talvez se nos torne mais fácil entender o amor: é aquilo que não se esquece. Mesmo quando na sua configuração mnemónica se assemelha ao ódio, o amor é aquilo que não se esquece. É o que nos perdura no sangue, o que se nos impõe na memória. Os filmes de Wong Kar-Wai são belos poemas ao amor (não de amor), poemas em movimento. Águas passadas, dizem. Mas a gente olha-os nos olhos e vemos que são águas de sempre, essas águas que surgem das frestas e escorrem pelo rosto abaixo. Não é de agora, este aguaceiro que nos afunda. Todos nós o sabemos, embora nunca nenhum de nós tenha chegado à fonte. Mas se ofereceres à chuva as mãos em concha, para depois levares à boca o gosto da água, poderás provar pelos teus próprios lábios o que atravessa o tempo. Lágrimas de amor. Ou, dito de outra forma: «Fechas os olhos, /vertes uma lágrima: / um corte infortunado / com o paladar das manhãs. / Libertas a terra dos sonhos que a alimentam, / domas o corpo vespertino. / Estás pronta para acordar de uma velha recordação».
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