terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
PARIS
Nascido em Paris, filho de pais americanos, Julien Green (1900-1998) manteve sempre a cidadania americana. Serviu no exército francês, viveu praticamente toda a sua vida na cidade luz. As excepções aconteceram entre 1919-22, anos de estudo na Universidade de Virgínia, e durante a Segunda Grande Guerra. Paris foi publicado em 1991 e mostra-nos a importância da capital francesa na vida e na obra do autor de As terras Distantes (1987). Foi agora integrado pela Tinta-da-china numa colecção coordenada por Carlos Vaz Marques, que aqui acumulou a função de tradutor. Tratando-se de uma colecção especialmente inclinada para a chamada literatura de viagens, cabe dizer que Paris não encaixa ortodoxamente no conceito. De resto, a figura do viajante não é cara a Julien Green: «O viajante, por mais que fale, parece, quando termina, não ter dito nada» (p. 51). Neste livro encontramos antes um conjunto de prosas diversas, breves ensaios, narrativas curtas, que testemunham o amor de um homem por uma cidade, ao mesmo tempo que especulam sobre um conjunto vasto de questões acerca da relação homem-cidade. O viajante dá lugar ao passeante, ao flâneur que deambula pelas ruas como se deambulasse dentro de si próprio, pois entre ele e a cidade há apenas a confusão de duas dimensões unidas numa mesma realidade. A distância forçada entre ambos obriga ao discurso hiperbólico: «Durante os longos anos de guerra em que vivi longe de Paris, frequentemente me interroguei como é que num pequeno compartimento do cérebro humano podia caber tão grande cidade» (p. 19). Repete-se: «Quando eu era criança, interrogava-me como poderia o simples nome de Paris designar coisas tão diversas, tantas ruas e praças, tantos jardins, tantas casas, tantos telhados, chaminés e, para além de tudo isso, o céu inconstante e leve que coroa a nossa cidade; e quanto mais pensava nisso mais me parecia espantoso que uma cidade tão grande pudesse caber num nome tão curto» (p. 41-42). Os excertos são reveladores de duas vias de pensamento que acompanharão todos os textos: as memórias da Paris de infância e os tempos de afastamento. De resto, ambas as questões se interligam quando o discurso pende para uma desconfiança bastante crítica relativamente ao futuro da cidade. O sentimento é de perda, é de degradação, as digressões pelas ruas, pelos bairros, pelas praças parisienses são acompanhadas de retratos impressionistas que evocam frequentemente a infância perdida, a infância do homem e a infância da cidade, pois ambas se confundem numa só existência: «quando me passeio por Passy parece-me que deambulo por dentro de mim mesmo» (p. 25). A impossibilidade de revelar a alma de Paris, a insistência no indizível, em tudo o que as palavras não conseguem exprimir, não impedem o testemunho das catástrofes anunciadas por um progresso mais voltado para a praga turística do que para os habitantes da cidade. A Torre Eiffel, monumento que o autor desejaria ver submerso, aparece como o exemplo máximo dessa corrupção da beleza, das «transformações infelizes» que mancharam a paisagem, atentando contra o encanto de uma atmosfera que já só se encontra nos caminhos da memória: «se quero rever Paris é em mim mesmo que a encontro» (p. 42). O tom do reencontro é tão melancólico quão nostálgico, o olhar volta-se para as árvores, para os castanheiros do Trocadéro, divaga «através da trágica alternância entre esperança e desespero e através dos terríveis langores da ausência» (p. 47), busca o incompreensível e o inexplicável nas velhas escadarias, logra alguma ironia, passeia os sonhos lentamente por entre Museus, Ruas, Rostos e Estações do Ano, dá forma ao “espírito do passeante” deixando o Sena falar, lamenta a ausência de poesia, caminha dentro de inúmeras imagens que a todo o momento denunciam a perda e o desaparecimento: «Cá fora, na praça Vosges, estavam a ser derrubados ulmeiros. Era um pouco como se se estivessem a apagar milhares de encontros, ternos e terríveis, já que as pessoas podiam exprimir-se aqui recorrendo tanto a armas como a madrigais…» (p. 90). Mais do que inventariar uma cidade, Paris oferece-nos retratos inextinguíveis de um tempo que foi o tempo do passeante solitário e aventuroso Julien Green. Elogio, declaração de amor, exercício sobre o indefinível, este livro é, antes de mais, um testemunho da inevitável destruição que acompanha o passar do tempo. O que nele perdurará, perdurará apenas e tão-só nele.
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