Li o primeiro romance do Fernando Dinis com o natural entusiasmo de o saber seu. Havia dado conta da felicidade que senti ao saber ter ido para ele o prémio que tornou possível esta sua estreia num género maior, talvez o mais exigente de todos os géneros literários. O Fernando foi um fugaz colaborador do Insónia. Simpatizo com ele como pessoa, porque tomo-o por honesto e dócil (qualidades cada vez mais difíceis de conciliar). Ora, isto nada tem que ver com livros. Os livros a gente lê com maior ou menor agrado, os livros a gente lê para falar deles, para os discutir, para com eles aprender alguma coisa nesta vida onde parece haver sempre tanta gente disposta a ensinar e poucos inclinados para a aprendizagem. A Casa do Esquecimento é um bom título. O ponto de partida anunciado na capa é cativante: poderá o Destino esquecer-se de alguém? A questão levantada na contracapa do livro abre-nos o apetite para um belo argumento: o que acontecerá quando um “esquecido” tem oportunidade de se tornar, ele próprio, o destino de muitas outras pessoas? O problema é que o romance do Fernando Dinis não só não responde à última questão como parece querer passar-lhes ao lado. Um romance exige uma maturidade na escrita que, a meu ver, passa por saber escutar os pormenores, ter mão segura nos excessos e perscrutar a linguagem no que ela possa oferecer de novo aos mesmos temas de sempre. Não li muitos romances de autores portugueses mais novos. Geralmente enfastiam-me e fico com a sensação de que me dizem pouco, não tanto quanto me dizem alguns clássicos, os melhores poemas dos melhores poetas, a filosofia, o ensaio. Mas julgo ter lido um número suficiente de livros do género para perceber que um bom romance resulta quase sempre de um processo de aprendizagem que ensina a integrar de um modo equilibrado os saberes oriundos da vida, as reflexões que bebemos nos filósofos, na ciência, nos historiadores, e exploramos à nossa maneira, a poesia onde conflui tudo o que resiste ao determinismo da razão e às certezas da fé. A Casa do Esquecimento não reflecte esse equilíbrio. Antes pelo contrário, e afirmo-o com tristeza, parece não ter grande coisa a oferecer-nos para lá do divertimento natural que a leitura das suas 210 páginas possa fornecer a quem o leia. Mas mesmo esse divertimento é amiúde posto em causa com algumas incongruências, a falta de uma revisão exigente que libertasse o texto de várias gralhas e opções sintácticas questionáveis, assim como de uma mão insegura em várias partes onde a narrativa podia oferecer muito mais do que aquilo que oferece. Só para dar um exemplo, o capítulo 18 é especialmente incomodativo. Trata-se de uma cena de sexo, algo que na prosa portuguesa continua a motivar estranhos embaraços. Note-se: «Sondou-me os lábios e pude sentir a sua respiração quente, o hálito adocicado. Depois avançou como se sentisse por mim uma paixão furiosa e fossemos [sic] os mais antigos e fervorosos amantes» (p. 98). Ou esta outra: «Apenas as aureolas [sic] rosadas dos mamilos, no centro dos fartos seios que se inclinavam ligeiramente para cima, pontiagudos» (p. 99). Mas há ainda o uso de expressões bastante questionáveis: «sondou-me os lábios», «denunciou a sua púbis», «copulando os seus lábios com rigor sábio», etc. O próprio uso da expressão «relações sexuais» no contexto de uma foda momentânea deixa muito a desejar, para não referir o facto dessa única foda ter servido para que a personagem em causa ficasse viciada num mundo para o qual acabara de entrar. E que mundo é esse? Uma misteriosa associação com contornos de seita mas sem grande consistência, quer de um ponto de vista alegórico, quer numa perspectiva naturalista. No fim, ficam-nos duas histórias intercaladas que pretendem mostrar-nos homens com destinos aparentemente diferentes mas com um mesmo fim: o esquecimento. Acontece que uma das histórias, a de Henrique, prolonga-se para lá do desejável, enquanto a outra, a de Artur Poeira, termina antes de poder ter sido devidamente explorada. Os capítulos 29 e 31, por exemplo, são bastante bons. O confronto de Artur Poeira com o seu destino, que se esquecera deste pacato, previsível, resignado e solitário homem de 41 anos, é bastante convincente e levanta questões pertinentes acerca do sentido da vida. O destino esqueceu-se de Artur Poeira porque este, no fundo, esqueceu-se de assumir a sua própria vida. Acontece que apenas a espaços estas questões emergem, não chegando nunca a sair da superfície, acabando o romance por perder-se em duas narrativas paralelas como se o autor tivesse resolvido intercalar dois contos diferentes sobre um mesmo tema. Ficamos, assim, com um primeiro romance manchado por falhas que podem, devem e vão ser superadas por um autor ainda a iniciar-se no mais exigente dos géneros literários.
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