Este ano, o Grande Prémio da Secção Oficial de Cinema Fantástico do Fantasporto foi atribuído a um filme de animação. Idiots and Angels, de Bill Plympton, é, sem dúvida, um filme fantástico, pelo que o prémio é adequado sob todos os pontos de vista. Reminiscências kafkianas transportam-nos para um cenário negro com personagens maldosas, terrivelmente maldosas, numa cidade obscura e inóspita. Há quem sonhe com impossíveis e há quem faça os possíveis para que os sonhos dos outros não se concretizem. Tudo é muito negro, tudo parece estranhamente real. Digo estranhamente por estarmos a falar de desenhos animados. Mais uma vez, a relação entre a realidade e a ficção, enquanto representação do real, ganha um veio que me leva a crer no desenho como num vocábulo que exprime com mais verosimilhança a carne e o osso do que as representações de carne e osso adulteradas por uma panóplia de efeitos especiais que outra coisa não fazem senão plastificar a matéria orgânica. As personagens de Idiots and Angels adquirem muitas vezes o corpo ruinoso e derradeiro da existência, são, digamos assim, construções naturalistas que exprimem de um modo fotográfico sentimentos, sensações, emoções raramente captadas pela fotografia em movimento. Aí está o desenho a mostrar-nos o que o reflexo omite, aí está o desenho a tornar manifestos, com uma lucidez funesta, os subterrâneos dos homens e das relações que estabelecem entre si. O fumo é denso, os corpos são grotescos, as superfícies rugosas, as personagens grunhem como se fossem animais e as fisionomias não distam muito da dos suínos. Os dias nascem nocturnos, a música adensa a figuração, a voz cavernosa de Tom Waits confere àquela deformação uma forma bem fiel a um imaginário noir povoado de crápulas e de criminosos. Acontece que até o mais porco dos porcos pode ser surpreendido pelo bem, numa metamorfose indesejada que se revelará dificilmente sustentável num cenário de gente arrivista e invejosa. Crescem umas asas nas costas do mal que o impedem de fazer o mal (excepto quando voa e caga para os que rastejam - sinal dos tempos). Paradoxalmente, não só o impedem de fazer o mal como provocam o mal nos outros. Pelas razões mais erradas – fama, poder, sucesso -, aquelas asas, aos olhos de quem as vê, não tem o mesmo significado que têm para quem as carrega. As asas que crescem nas costas do mal estimulam a ambição, não de quem pretende com elas servir o bem, mas de quem as pretende usar para mais mal poder realizar. Aquelas asas surgem acidental e inesperadamente num mundo de gente cobiçosa. Elas podem representar inúmeros instrumentos que acabaram por se revelar sombrios quando era suposto oferecerem luz ao desfocado mundo humano. A dicotomia que o título aparenta acaba por não fazer grande sentido, pois é no idiota que o anjo se revela. E ao revelar-se, torna clara a idiotice alheia. Eu preferiria algo mais sardónico. Talvez um anjo revelando-se um perfeito idiota. Mas aí teríamos uma redundância. Certo?
Sem comentários:
Enviar um comentário