quarta-feira, 4 de março de 2009

DO OLHAR

Os problemas aludidos no mais recente filme de Wim Wenders não são exclusivos da poética do olhar ensaiada em Palermo Shooting. Essas mesmas questões já pairavam em obras anteriores do realizador alemão. Em The End of Violence (1997) e Land of Plenty (2004), por exemplo, o registo visual serve para tornar explícita a paranóia que caracteriza hoje o mundo da vigilância. Tendo assistido recentemente a um conjunto diversificado de filmes onde o olhar se apresenta na sua mais paradoxal relação com a realidade, lembrei-me de O olho e o espírito – derradeiro ensaio do filósofo Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Em Transsiberian (2008), thriller mediano com Woody Harrelson e Ben Kingsley, a verdade fica por apurar devido a um gesto tão simples como é o de apagar uma fotografia. A ser revelada, essa fotografia permitiria desmascarar toda uma situação. Já em Eden Lake (2008) um problemático adolescente serve-se de um telemóvel para manipular os seus camaradas de grupo tornando-os cúmplices dos seus crimes. Também neste caso, a tecla delete assume contornos de poder sobre a realidade captada. Digamos que mais do que uma manipulação da verdade, em ambos os gestos o poder manifesta-se na capacidade de apagar um registo que tornaria real o que se pretende improvável. Isto é: mais do que tornar visível a realidade, o poder está em apagar essa mesma realidade. Esta ilusão só é possível porque a determinada altura nós passámos a confundir o real com o visível, quando sabemos que para lá do visível há toda uma realidade que nenhuma tecnologia logra captar. Merleau-Ponty falava da pintura como o que «confere existência visível ao que a visão profana crê invisível». A pintura, segundo o filósofo francês, «faz com que não necessitemos de um “sentido muscular” para ter a volumetria do mundo». Num outro filme, construído sobre a biografia de El Greco, diz-se várias vezes que o pintor tinha o poder de transformar pessoas comuns em santos. Numa curiosa cena, El Greco pede à amada que feche os olhos e lhe diga o que vê num quadro que ele pintara. Em todos os exemplos aqui enunciados, o que está em evidência é o facto de a realidade não se resumir ao visível. Por vezes é preciso fechar os olhos para ver melhor. O que as tecnologias trouxeram foi o reforço de uma velha ilusão, a de que o real e a verdade acerca do real se restringem ao reflexo do corpo no espelho e se confundem com esse reflexo. O gesto do adolescente problemático não difere muito da falsificação de fotografias na época estalinista, assim como a fotografia apagada em Transsiberian adia a revelação da verdade até que outras provas possam tornar visível o que foi apagado. Apagar as provas de um crime nada tem de inédito, o que há de coincidente em ambos os casos é esta vulgarização de um poder outrora limitado a quem detivesse o domínio sobre a “ciência de apagar”. Tem por isso razão o filósofo quando afirma que «das coisas aos olhos e dos olhos à visão nada ocorre para além do que vai das coisas às mãos do cego e das suas mãos ao pensamento. A visão não é a metamorfose das coisas mesmas na sua visão, a dupla pertença das coisas ao grande mundo e a um pequeno mundo privado. É um pensamento que descodifica estritamente os signos dados no corpo. A semelhança é o resultado da percepção, não a sua mola». Acontece que é ainda no corpo que o visível se nos torna claro quando o olhamos de olhos fechados, quando tentamos ver não o reflexo, não o fantasma, mas o corpo inteiro, absoluto. Fechar os olhos perante um corpo real não é o mesmo que apagá-lo, é procurar vê-lo para lá do que o músculo ocular logra percepcionar. Este ver para lá de nada tem de milagroso, profético ou metafísico. No fundo, talvez resulte apenas de uma concentração mais equilibrada dos sentidos, os quais não estarão já apenas dependentes do olho para verem. Este ver para lá de é ainda do território do sensível, no que nele possa existir de sensibilidade. A questão é que esse território tem sido bombardeado pelos artifícios do olhar, sendo já pouca a sensibilidade para ver além do visível. «Não há visão sem pensamento», pois claro. Não havendo pensamento, que podemos nós esperar da visão? Vejo ali ao lado o Ensaio sobre a cegueira. Por agora fico-me. Já tive sociologia suficiente nos últimos tempos.

Sem comentários: