Uma mulher atravessa uma crise como um velho desamparado atravessa uma rua. Predispõe-se aos acidentes, atravessa sem bengalas, voa sem rede, recorda-nos o equilibrista às portas do céu porque o perigo de uma decisão mal gerida pode apressar o instante da derrocada. Ao contrário do equilibrista, ela não dá passos cuidadosos. Anda para a frente, hesita, volta para trás, chora, limpa as lágrimas, abraça os filhos, cozinha o sangue, mas sem os cuidados extremos de quem não se abalança sem método. A mulher pensa no que poderia ter sido se, a determinada altura, os traços que o marido lhe desenhava não tivessem sido perturbados pela paixão, pelos ecos da juventude perdida, pela vontade que a todos toca quando o fracasso da vida acelera os relógios e as mãos começam a olhar-se imersas em interrogações. Que fiz eu? Valeu a pena? As interrogações perturbam o traço, os contornos do rosto acabam enrugados, a luz de outrora é substituída pela sombra do desalento. Uma mulher atravessa uma crise predispondo-se aos acidentes. Subitamente vê-se adormecida no vazio da almofada, olha para trás e não percebe os saltos do tempo, procura agarrar a vida com as mãos feridas de abandono. Sai-lhe no acidente um viajante, um jovem camionista de sensibilidade rude mas de sentimentos puros. Distinto da sofisticação do artista que deixou a mulher suspensa, este homem de traço rígido transporta o passado entre as grades dos erros cometidos e o sol vacilante dos perigos que o espreitam. Ele tem a marca dos renegados, a marca a que todas as crises se entregam quando atravessam, desamparadas, ruas intransitáveis. A mulher acaba a entregar-se a uma vida nova, ele entrega-se a ela. O futuro é de todos sabido. Não há futuro. E a vida é uma comédia romântica. Que nos escrevam cartas quando morrermos e connosco sejam solidários na morte é tudo o que podemos ambicionar.
Sem comentários:
Enviar um comentário