terça-feira, 17 de março de 2009

O CARNAVAL DOS ANIMAIS

Em 1886 Camille Saint-Saëns compôs Le carnaval des animaux, uma peça para dois pianos que acabaria por vir a revelar-se a mais célebre das obras do compositor francês. O poeta Rui Caeiro tomou-lhe o título de empréstimo e organizou um magnífico conjunto de epigramas de inclinação fabulística. Há muito de braço dado com Vítor Silva Tavares nessa poética aventura editorial que dá pelo nome de &etc., Caeiro faz questão de assumir o seu ateísmo militante em livros tais como Sobre Deus, sobre o magno problema da existência de Deus (1988), O Toureiro de Deus (1998) ou Olhar o Nada, Ver a Deus (2003). Nesta recolha mais recente o nado-morto não é esquecido, muito embora o Carnaval dialogue directamente com outros livros do mesmo autor. Pensamos em 49 Espinhas para um Gato (1997) e Gatos e Homens (2002). No excelente prefácio que inaugura as hostilidades, José Manuel de Vasconcelos lembra que: «A literatura portuguesa não é abundante no tratamento específico do tema dos animais. Há principalmente uma linha fabulística, mas, mesmo essa, muito subsidiária dos universos da fábula clássica, em que os animais falam e se comportam em tudo como pessoas, com objectivos de crítica de costumes, de denúncia social e propósitos moralizantes» (pp. 7-8). Neste caso, os objectivos não serão diversos, mas o propósito é claramente outro. Mais do que moralizar, os aforismos de Rui Caeiro testemunham um olhar arguto, atento, irónico, sarcástico quando o tema o exige, sábio - por que não reconhecê-lo? – no modo como perspectiva a realidade. Ao contrário da fábula clássica, eximiamente sintetizada no trecho citado, estes epigramas, ou, se preferirem, estes aforismos, não procuram tanto pôr os animais a falar como conseguem pôr os homens na fala dos animais, não vêem tanto comportamentos humanos nos animais como parecem ver comportamentos animais nas pessoas. De resto, a distinção entre o ser animal e o ser humano aparece recorrentemente, ou então acabam ambos integrados no conjunto das bestas, pelo que é de assinalar o facto de os próprios homens – enquanto classe animal específica - serem integrados neste bestiário carnavalesco onde desfilam suricatas, rolas, melros, pardais, formigas, elefantes, caracóis, baratas, águias, peixinhos de prata, cágados, mosquitos, andorinhas, bois, sapos, garças, tubarões, coelhos, leopardos, esquilos, papagaios, cavalos, hienas, cisnes, bivalves, pirilampos, açores, morcegos, pumas, girafas, grifos, abutres, borboletas, serpentes, bichos de conta, burros, galinhas, pavões (um deles dedicado a Manuel Alegre), porcos, camelos, dromedários, corujas, lesmas, lobos, ursos, zebras, rãs, grilos, aranhas, gatos, otárias, pombos, hipopótamos, rinocerontes, búfalos, cabras, cabrinhas, leões, leoas, golfinhos, iguanas, vermes, salmões, minhocas, castores, cães, medusas, tigres, lontras, leões marinhos, corças, catatuas, pinguins, moscas, crocodilos, chimpanzés, lagartixas, ouriços, toupeiras, abelhas, bichos da seda, baleias, flamingos, cangurus, pulgas, chitas, gazelas, alforrecas, linces, camaleões, lagartos, raposas, corvos, touros, ratos, vírus, bactérias, peixes, peixinhos vermelhos, sereias, avestruzes, aves, feras, monstros, animais de raça… A exaustão do inventário permite tornar explícita a relação entre um imaginário colectivo referente a animais inventados e a natureza adjectivante que muitas das bestas convocadas adquire na língua portuguesa. O boi não é apenas o quadrúpede ruminante e chifrudo que todos reconhecem, é também aquele que olha de um modo muito especial para os palácios; papagaios podem ser tagarelas; burros são os homens que tão maltratam a besta; sobre camelos e porcos muito haveria a dizer. Rui Caeiro, tradutor, entre outros, de Ramón Gómez de la Serna, oferece-nos neste volume algo muito semelhante ao que o escritor espanhol nos ofereceu nas Greguerías: breves composições de cariz essencialmente humorístico mas com efeitos subversivos assaz contundentes. As inversões lógicas, as associações metafóricas, provocam no leitor um riso malicioso e baudelairianamente demoníaco. É o riso de quem não está tão preocupado em moralizar como está em testemunhar, é o riso de quem não teme um gesto de denúncia que transcende a mesquinhez vazia e despropositada do ressentimento. Porque a questão não é pessoal, é humana. Daí as comparações, a intertextualidade, as evocações, esta óbvia cumplicidade essencial:

TOUROS − 4
É aquilo um acto de amor? Perguntarão os mais
Exigentes. Sim, claro, outra coisa não será. Amor entre
homem e besta. Amor entre duas bestas quaisquer


Rui Caeiro, O Carnaval dos Animais, Letra Livre, Outubro de 2008.

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