Originalmente publicado em 2007, A Loucura de Deus – Do Combate dos Três Monoteísmos (Relógio D’Água, Janeiro de 2009) resulta de uma conferência proferida a 28 de Novembro de 2006 numa instituição com o objectivo de desenvolver o diálogo entre as religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) através das artes. Feita a leitura, não pode o leitor deixar de sentir alguma perplexidade perante o título português da obra. António Guerreiro esclarece: «a palavra "loucura" do título português é a tradução da palavra alemã "Eifer", que significa também "zelo"» (Expresso). De facto, quem está em causa nos oito capítulos deste ensaio são os zeladores de Deus. Faria por isso mais sentido falar dos loucos de Deus em vez de uma improvável loucura do omnipresente.
Podemos dividir artificialmente em duas partes o itinerário proposto por Peter Sloterdijk (1947). Numa primeira parte o filósofo reflecte os fundamentos da transcendência e como esta foi sendo organizada numa tríade de religiões monoteístas com um historial expansionista a todos os títulos catastrófico. Das explicações biopsicológicas à narrativa histórica, pouco parece escapar no diagnóstico sugerido pelo filósofo alemão. Mesmo o leitor mais acólito não deixará de se inquietar com os sete aspectos do fenómeno da transcendência aqui esboçados, nomeadamente no que eles têm de razoável à luz das perspectivas científicas em voga. Não podemos, no entanto, deixar de fazer notar uma tendência algo contraproducente para a patologização da fé, a qual se afigura admissível no contexto de manifestações fundamentalistas mas está longe de encerrar a inexplicabilidade do mistério que abre as portas à transcendência.
A introdução acaba por servir apenas para abrir o caminho de uma análise do teatro da crueldade onde ao longo da história foram actuando as três grandes religiões monoteístas, explicado a partir daquilo a que Sloterdijk chama de «rituais de máximo stress», ou seja, momentos que permitem compreender biopsicologicamente a emergência, interiorização e radicalização dos dogmas. O zelo monoteísta originou vários confrontos e tensões entre as três sínteses, os quais são sintacticamente recenseados e desenvolvidos numa exposição clara das campanhas que, ao longo dos tempos, se constituíram como formas de expansão no mundo das três grandes religiões: soberania teocrática (judaísmo), actividade missionária (cristianismo), guerra santa (islamismo).
Na segunda parte do ensaio, por assim dizer, são traçados os modelos lógicos da fé num único Deus. Mergulha-se na raiz do problema. Não sendo possível desprezar os conhecimentos biopsicológicos, urge compreender a lógica do «movimento do pensamento suprematista». O problema da morte apresenta-se novamente como fulcral. Percebemos claramente em todas as religiões monoteístas uma tentativa de «positivação da morte» que procura dar asas ao ser de modo a que este possa elevar-se ao Altíssimo. Para lá da histeria, a ascensão tem uma implicação lógica: «os monoteísmos zeladores e as suas missões universalistas (…) fundam-se no princípio de que o risco do erro (…) deve ser eliminado por todos os meios – mesmo que isso implique apagar aquele que se engana ao mesmo tempo que o seu erro» (p. 85). A palavra do profeta transforma-se em axioma, exigindo assim uma submissão que trava o debate.
Será possível dialogar num cenário destes? O que pode tornar possível o diálogo? A resposta reside numa compreensão da tese lançada por Jacques Derrida (1930-2004): «Hoje, a guerra pela “apropriação de Jerusalém” é a guerra mundial». Para Sloterdijk «apropriar-se de Jerusalém» só pode significar uma coisa: querer apropriar-se de certos potenciais semânticos que autorizem os seus vectores a empreender campanhas com o carácter global já evocado» (p. 96). O objectivo final seria controlar os extremismos a partir do interior das religiões zeladoras. Controlar e não eliminar, o que não só se afigura impossível como - está mais que provado - produz danos colaterais irreversivelmente danosos. O combate aos extremismos só é possível no seio das grandes religiões, nomeadamente desdramatizando o texto absoluto, «dessuprematizando os suprematismos» na base de uma ciência da civilização com sentido de humor: «O processo de civilização dos monoteísmos será concluído quando os homens se envergonharem de certos ditos do seu Deus que, por infelicidade, foram conservados por escrito, como se tem vergonha das palavras de um avô habitualmente muito amável, mas sujeito a crises de cólera» (p. 107).
Falhado o programa de domesticação comunista, na medida em que, instaurando-se como «ateísmo político disposto a tudo», acabou resvalando para outra forma de suprematismo que substituiu o «Altíssimo imaginário» das religiões por um «Altíssimo real» político, resta-nos a esperança numa ciência crítica da civilização. Ainda mal começámos essa nova caminhada, é certo, mas já a desconfiança assola o leitor. Afinal de contas, o que temos hoje no chamado mundo civilizado não é tanto uma reconquista da reputação das religiões como parece ser uma nova forma de religião chamada economia, baseada na fé do consumo e temente ao Deus monetário. Talvez esse seja apenas outro suprematismo cujas vítimas ainda estão por contabilizar.
Podemos dividir artificialmente em duas partes o itinerário proposto por Peter Sloterdijk (1947). Numa primeira parte o filósofo reflecte os fundamentos da transcendência e como esta foi sendo organizada numa tríade de religiões monoteístas com um historial expansionista a todos os títulos catastrófico. Das explicações biopsicológicas à narrativa histórica, pouco parece escapar no diagnóstico sugerido pelo filósofo alemão. Mesmo o leitor mais acólito não deixará de se inquietar com os sete aspectos do fenómeno da transcendência aqui esboçados, nomeadamente no que eles têm de razoável à luz das perspectivas científicas em voga. Não podemos, no entanto, deixar de fazer notar uma tendência algo contraproducente para a patologização da fé, a qual se afigura admissível no contexto de manifestações fundamentalistas mas está longe de encerrar a inexplicabilidade do mistério que abre as portas à transcendência.
A introdução acaba por servir apenas para abrir o caminho de uma análise do teatro da crueldade onde ao longo da história foram actuando as três grandes religiões monoteístas, explicado a partir daquilo a que Sloterdijk chama de «rituais de máximo stress», ou seja, momentos que permitem compreender biopsicologicamente a emergência, interiorização e radicalização dos dogmas. O zelo monoteísta originou vários confrontos e tensões entre as três sínteses, os quais são sintacticamente recenseados e desenvolvidos numa exposição clara das campanhas que, ao longo dos tempos, se constituíram como formas de expansão no mundo das três grandes religiões: soberania teocrática (judaísmo), actividade missionária (cristianismo), guerra santa (islamismo).
Na segunda parte do ensaio, por assim dizer, são traçados os modelos lógicos da fé num único Deus. Mergulha-se na raiz do problema. Não sendo possível desprezar os conhecimentos biopsicológicos, urge compreender a lógica do «movimento do pensamento suprematista». O problema da morte apresenta-se novamente como fulcral. Percebemos claramente em todas as religiões monoteístas uma tentativa de «positivação da morte» que procura dar asas ao ser de modo a que este possa elevar-se ao Altíssimo. Para lá da histeria, a ascensão tem uma implicação lógica: «os monoteísmos zeladores e as suas missões universalistas (…) fundam-se no princípio de que o risco do erro (…) deve ser eliminado por todos os meios – mesmo que isso implique apagar aquele que se engana ao mesmo tempo que o seu erro» (p. 85). A palavra do profeta transforma-se em axioma, exigindo assim uma submissão que trava o debate.
Será possível dialogar num cenário destes? O que pode tornar possível o diálogo? A resposta reside numa compreensão da tese lançada por Jacques Derrida (1930-2004): «Hoje, a guerra pela “apropriação de Jerusalém” é a guerra mundial». Para Sloterdijk «apropriar-se de Jerusalém» só pode significar uma coisa: querer apropriar-se de certos potenciais semânticos que autorizem os seus vectores a empreender campanhas com o carácter global já evocado» (p. 96). O objectivo final seria controlar os extremismos a partir do interior das religiões zeladoras. Controlar e não eliminar, o que não só se afigura impossível como - está mais que provado - produz danos colaterais irreversivelmente danosos. O combate aos extremismos só é possível no seio das grandes religiões, nomeadamente desdramatizando o texto absoluto, «dessuprematizando os suprematismos» na base de uma ciência da civilização com sentido de humor: «O processo de civilização dos monoteísmos será concluído quando os homens se envergonharem de certos ditos do seu Deus que, por infelicidade, foram conservados por escrito, como se tem vergonha das palavras de um avô habitualmente muito amável, mas sujeito a crises de cólera» (p. 107).
Falhado o programa de domesticação comunista, na medida em que, instaurando-se como «ateísmo político disposto a tudo», acabou resvalando para outra forma de suprematismo que substituiu o «Altíssimo imaginário» das religiões por um «Altíssimo real» político, resta-nos a esperança numa ciência crítica da civilização. Ainda mal começámos essa nova caminhada, é certo, mas já a desconfiança assola o leitor. Afinal de contas, o que temos hoje no chamado mundo civilizado não é tanto uma reconquista da reputação das religiões como parece ser uma nova forma de religião chamada economia, baseada na fé do consumo e temente ao Deus monetário. Talvez esse seja apenas outro suprematismo cujas vítimas ainda estão por contabilizar.
Escrito para o Rascunho.
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