Por vezes a personalidade do criador sobrepõe-se à obra, gerando no eventual leitor sentimentos de simpatia ou de antipatia que abrirão ou obstaculizarão o caminho da leitura. “António Botto – Real e Imaginário”, ensaio biográfico de António Augusto Sales publicado pela Livros do Brasil em 1997, serviu-me de ponte para as “Canções”. Perdi-me em algumas delas com espanto e gozo, do mesmo género daquele que experimentei quando encontrei o poeta nas “Líricas Portuguesas” de Jorge de Sena ou na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” que honrou Natália Correia com 3 anos de pena suspensa. Durante muitos anos, a poesia de Botto ficou-me restringida aos poemas contidos nessas duas monumentais e polémicas antologias e a mais alguns poemas fotocopiados de edições dificilmente adquiríveis. O silenciamento crítico de que Eduardo Pitta dá conta na introdução a “Canções e Outros Poemas” (Quasi, Maio de 2008) ajudou apenas a reforçar os equívocos resultantes de leituras precipitadas e menos sérias, nomeadamente aquele que pretende confinar a poesia de António Botto à lírica de temática homoerótica. Poderá uma vastíssima obra que inclui, além de poesia, textos dramatúrgicos, contos, novelas, narrativas quotidianas, cartas, ser apenas e tão-só a expressão de uma condição sexual? O repúdio da vulgaridade, uma corajosa autenticidade, a afirmação de corpo inteiro num país fatidicamente provinciano, desde logo nas suas elites, explicam a cegueira que ao longo de vários anos tem arrumado a poesia de António Botto na sacola do esquecimento. A estética das “Canções” encontra as suas raízes na ética hedonista, numa identificação da beleza com o desejo que enaltece o gesto criador para lá de qualquer paradigma que o pretenda fixar. É uma poesia corajosa, não apenas por nela o coração se mostrar, mas também porque nela o coração se constrói como um cisne a cantar enquanto morre. Estamos fartos de saber que se há qualidades que os portugueses não suportam, das bases à “intelligentzia”, são as do desassombro e da mais básica honestidade do ser para consigo próprio, uma honestidade que tantas vezes resulta numa dúvida que mescla verdade com fingimento. Na arte poética de Botto a coragem aparece contextualizada num lugar crepuscular tipicamente modernista. Repare-se no final de uma canção que convoca Rimbaud e Verlaine: «Mas tudo isto é verdade? // Tudo aconteceu assim? // No labirinto sombrio / Do meu destino de Artista, / Muito mais e muito mais / Se passa dentro de mim» (p. 87). Este poema integra o volume “Curiosidades Estéticas” (1924), publicado com posfácio de Mário Saa. Vinte anos depois, no livro intitulado “Toda a Vida” (Pitta adoptou a versão de 1944), Botto iniciará assim um poema: «Tudo o que eu digo é verdadeiro» (p. 298), para logo terminar deste modo um outro: «Não leias estes versos. Tudo isto, / Tudo isto, afinal, é só mentira» (p. 301). Verdade e mentira não se distinguem em poesia, são, perdoem-me o plebeísmo, as duas faces de uma mesma moeda, o tal labirinto sombrio do destino do artista. Mentir é preciso, reforçará ainda o poeta, consciente, talvez, do seu não-lugar num meio que o vexava. Pelo meio das canções, organizadas em sequências, encontramos alguns conjuntos de poemas autónomos, como o “Poema de Cinza” dedicado ao amigo Fernando Pessoa. A crónica é explícita e, atrevo-me a dizê-lo, permanece actual: «Isto por cá vai indo como dantes; / O mesmo arremelgado idiotismo / Nuns senhores que tu já conhecias / - Autênticos patifes bem falantes… / E a mesma intriga; as horas, os minutos, / As noites sempre iguais, os mesmos dias, / Tudo igual!» (p. 217) Estas “Canções”, que ao longo dos anos foram sofrendo variadíssimos ajustes, revelam-se deste modo a obra de um drama interior exposto ao conflito - «Tudo quanto for vida governada, / Medir profundidades, / Dá-me raiva, revolta, sinto nojo, e até pavor!» (p. 401) -, que jamais recusou a sua natureza paradoxal para se refugiar numa normalidade que o poeta não se limitava apenas a questionar: «Moral! Que vem a ser isso / Que se dá sem se pedir?» (p. 267) O resultado é visível: uma casa construída no deserto (ver a canção da p. 389), um fim miseravelmente só. Ora, se não bastaram outrora os elogios de Fernando Pessoa, de que podem agora valer as parcas considerações de um leitor? Apenas uma esmola contra o esquecimento, porque também ao leitor nauseiam as vidas arrumadas. Prefere o leitor reencontrar-se com o poeta nos lupanares da cidade e aí entender a “Filosofia de um Alcoólico” que soube retratar o fado de uma sociedade que só não se perdeu no tempo porque, de quando em vez, o tempo retorna como um eco dificilmente compreensível. Haja em toda esta escandalosa história, dos livros apreendidos à miséria e ao ostracismo, passando pelas campanhas de desvalorização, pelo puritanismo facínora dos censores, pelas polémicas mais de carácter do que de génio, pela expulsão da função pública, mais uma pequena lição de como a poesia não se compadece com elogios momentâneos nem com lugares à sombra de futuros sem vida. A vida que se foi pondo nos poemas está novamente disponível nas “Obras Completas de António Botto” que Eduardo Pitta vai dirigindo e as Quasi vão publicando. O primeiro volume saiu há quase um ano. Quem deu por ele?
Escrito para o Rascunho.
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