segunda-feira, 25 de maio de 2009

POESIA CUBANA CONTEMPORÂNEA

Quem tiver a felicidade de passar os olhos por Before Night Falls (2000), o filme de Julian Schnabel que adapta a biografia do poeta cubano Reinaldo Arenas (n. 1943-m. 1990), não poderá ficar com uma imagem romântica da revolução castrista. As t-shirts estampadas com o rosto mitológico de Che Guevara são apenas a caricatura de um sonho caído por terra assim que constatamos a facilidade com que revoluções libertadoras se transformam em sistemas persecutórios sem espaço para a independência criativa. A poesia, território linguístico de uma liberdade sem concessões que não sejam as de um teimoso abuso da palavra e dos atentados gramaticais, só pode ser tomada como inimiga por todos aqueles que esperam do poeta a cumplicidade castradora das escolas, da submissão a ideais construídos em favor das congregações, ou seja, contra os indivíduos.

Não é pois de estranhar que ao longo da história da humanidade os poetas tenham sido sempre colocados à margem dos interesses da República platónica. A inexistência de um lugar para os poetas nessa República ideal só abona em favor da poesia, na medida em que censurá-la é reconhecê-la como força autónoma, um alvo a abater, presa de caçadores fardados com bandeiras que iludem o sentimento de pertença a um qualquer ideal ao mesmo tempo que negam a quem delas se reveste a pertença de si próprios. Também em democracia há muito disto: coros afinados por um mesmo diapasão, grupos sem manifesto, mas com um sentido muito peculiar do nepotismo que os move, gente adormecida numa vaidade breve que é a de se julgarem poderosos, importantes, influentes entre os demais onde também se fazem incluir.

No excelente prefácio a Poesia Cubana Contemporânea (Antígona, Março de 2009), Pedro Marqués de Armas (n. 1965), também ele poeta, introduz-nos às particularidades de uma poesia obrigada a afirmar-se resistindo à resistência. O ideal revolucionário cubano rapidamente se transformou num pesadelo para todos os que estavam empenhados na afirmação da (sua) liberdade, uma liberdade criativa acompanhada da liberdade existencial que todos os poetas dignos de tal estatuto procuram experienciar na vida ainda antes de a concretizarem sob a forma escrita. Não é preciso ler Contribuições, cáustico poema de Arenas, para perceber as antinomias de uma política revolucionária que facilmente se volta contra os revolucionários. No fundo, quanto mais revolucionário mais conservador no exercício da revolução. O resultado só poderá ser desastroso.

Marqués de Armas fala-nos de «um sentimento de insularidade» e de isolamento geográfico e histórico, refere «uma certa subordinação do cânone literário ao político», cita pertinentemente o crítico Enrique José Varona: «Porque em Cuba pode-se ser poeta mas não viver como poeta.» A questão é: pode alguém ser o que/como não pode viver? Talvez esta seja a questão última que nos fica após a leitura dos dez poetas antologiados, tal é a sensação de exílio, desenraizamento, por vezes até de autocensura que perpassa a maioria dos poemas. Tendo em conta as breves resenhas biográficas que acompanham cada um dos poetas seleccionados, verificamos que apenas dois residem em Cuba; à excepção de Reinaldo Arenas e de Ángel Escobar Varela (1957-1997), ambos suicidas, todos os outros estão vivos. Quase todos preferiram o exílio a sentirem-se estrangeiros no seu próprio país, o que faz desta uma antologia de poetas cubanos desterrados, de certo modo proscritos pelo ideal político da Revolução Cubana.

José Kozer (1940) é bastante evidente no seu sentimento apátrida: «A minha Pátria é a irrealidade» (p. 29). Talvez reagindo contra o realismo socialista, a poesia de Kozer manifesta um desregramento sintáctico que dificulta a leitura. Não se furta, porém, à derisão mais óbvia: «Cagai, pernaltas, sobre a figura do emissário disfarçado de Gautama» (p. 47). Reinaldo Arenas questiona os méritos da revolução manifestando abertamente a sua condição de homossexual perseguido e expatriado. O tom é corrosivo, fazendo justiça ao propósito do autor: escrever por vingança. Reina María Rodríguez (1952) pratica o poema de maior fôlego e nota-se-lhe uma especial inclinação para imagens brutais e violentas: «Fez um aborto com uma agulha,/ mas o ovo continuava preso (obscuro)/ como uma gema dura, sem se desprender./ O seu dedo não conseguiu arrancá-lo» (p. 87). Ruínas, «desencanto perante a Utopia», trágico desalinho, amargura, transgressão e violência, são apenas características que podem guiar uma leitura.

Igualmente violenta é a alucinante poesia de Ángel Escobar Varela. Esquizofrénico, escreve na primeira pessoa com um sentido catártico perturbador: «Eu vi Rimbaud cuspindo/ numa cesta de olhos bem temperados,/ e são como agulhas. Vi-o «Não me/ arrependo». Estou tranquilo, sou/ o escriba, o boi/ que não teve nada. Estou tranquilo» (p. 105). Rolando Sánchez Mejías, exilado em Barcelona desde 1997, é autor de uma poesia mais experimental que se aventura, a espaços, pelo poema em prosa. O mesmo informalismo se reconhece em Ismael González Castañer (1961), embora os poemas deste manifestem relações intertextuais mais evidentes. Já Antonio José Ponte (1964), a viver em Madrid, denota um tom reflexivo e interrogativo. É seu um dos melhores poemas desta antologia: Entre os Colegiais d’Os Karamazov. Omar Peréz (1964) tem uma poesia tão irónica quão contundente. Damaris Calderón (1966) e Alessandra Molina (1968) optam por discursos cortantes, por vezes narrativos — mais a última —, mas igualmente desencantados: «Celebro-me, canto-me e detesto-me a mim mesmo como a ninguém» (D.C., p. 201). Coube a tradução dos poemas ao poeta português Jorge Melícias.

Escrito para o Rascunho.

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