sábado, 16 de maio de 2009

TUDO SE PAGA, DEMORE O TEMPO QUE DEMORAR

O ano em que se comemora o bicentenário do nascimento de Edgar Allan Poe (1809-1849) também pode servir para estimular a (re)descoberta de outros mestres da chamada literatura fantástica. Entre eles, distingue-se o nome do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), autor da famigerada novela O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Publicada em 1886, esta narrativa da «dualidade do homem» tem merecido reencarnações sucessivas ao longo dos anos. Talvez o fenómeno possa ser compreendido se pensarmos o problema de Henry Jekyll à luz de uma concepção conflituosa da natureza humana que integra, com estrondosa actualidade, velhas oposições identitárias e morais. Para Stevenson, homem de saúde débil, mas aventureiro incansável, o que parece estar sempre em causa, mais do que um maniqueísmo moral ultrapassado, é a ideia do corpo enquanto lugar de conflitos, paradoxos, inexplicáveis mistérios. À razão que tudo determina, define e explica, sobrepõe-se a consciência dos labirintos indefiníveis da própria consciência ou, se quisermos, a floresta misteriosa do inconsciente que a psicanálise se encarregaria de desbravar.

Convém, no entanto, atentarmo-nos aos temas da época para os quais Jorge Pereirinha Pires nos envia no prefácio a esta edição da Assírio & Alvim (Outubro de 2007): a lei da homossexualidade publicada em 1885, a sífilis, os filhos ilegítimos, todo um rol de situações exemplificativas de uma sociedade que se ocultava sob a fachada moralizante da tradição e do puritanismo. De resto, podemos hoje supor que a droga que permitiu o aparecimento de Edward Hyde, esse demónio agrilhoado nas profundezas do benemérito Dr. Henry Jekyll, era uma espécie de soro da verdade a partir do qual as faces dissimuladas da natureza humana emergiam sem o véu de uma maquilhagem hipócrita. A confissão final do Dr. Henry Jekyll abala-nos como uma luz que subitamente alumia as cicatrizes nocturnas de um desespero, de uma tortura, de uma doença crescendo no sangue para fora do corpo. A confissão não cura, apenas desvela. Os sucessivos pormenores atmosféricos, o jogo subtil de tons e de luminosidades que Stevenson imprime à prosa, não são inocentes. «À luz de uma melancólica candeia» ou debaixo «de um crepúsculo prematuro» a história bizarra do Dr. Jekyll testemunha a emergência do «fantasma de um qualquer antigo pecado, o cancro de uma qualquer desgraça escondida» (p. 124)

Testamentos destes não podem deixar de nos fazer pensar nas «irrupções de mau génio» que mancham o ar angelical das virgens ofendidas. W. Somerset Maugham (1874-1965) ensinou-nos qualquer coisa como isto: se a todo o momento os nossos pensamentos fossem projectados numa tela, então seríamos as pessoas mais censuráveis do mundo. À política castradora da perfeição, com meninos educados desde muito cedo para serem melhores do que os outros, exímios alunos e discípulos cumpridores, poderíamos nós responder com a maldade recalcada que a qualquer momento pode implodir deixando atrás de si um rasto de estilhaços dificilmente expurgáveis. O peso da moral que nos afunda sob o pretexto da integração é o mesmo que nos sufoca. Haverá sempre os integrados e os sufocados, é certo. Entre ambos apenas a thin red line que a qualquer momento, pelas razões mais improváveis, se rompe e tudo mistura. Em cada um deles a irrupção vulcânica das energias tomadas por negativas só será censurável se nos ativermos aos conceitos de bem e mal separadamente. No fundo, talvez sejamos todos um pouco de Jekyll, um tanto de Hyde. E não necessitamos de drogas para que ambos se revelem com a mais brutal das suas propriedades.

À mais famosa das obras de Robert Louis Stevenson, juntam-se dois contos nesta edição integrada na colecção Beltenebros. O Furta-Defuntos (1884), tal como o título indica, reproduz um tema caro à literatura gótica: cadáveres saqueados para experiências anatómicas. Os crimes operam-se dentro da bruma sombria de ruas decadentes com tabernas abjectas. Leões e cordeiros, bêbados, prostitutas, servem tanto para traçar uma anatomia social paranoicamente arreigada ao segredo como para desmanchar a moralidade canina desse mesmo ambiente social. Olalla (1885) passa-se em Espanha e, partindo de um caso de amor, explora de um modo único a dicotomia fé/razão. A intriga envia-nos para um ambiente claustrofóbico de desconfiança, degenerescência, declínio, mistério. Os bosques irmanam com a obscuridade dos corpos, dissecados até ao cume do vazio moral. Stevenson murmura à consciência do leitor «uma parábola da vida familiar» que, à semelhança do que sucede nos outros contos, releva o carácter paradoxal da realidade. A amada é descrita como «uma coisa brutal e divina, simultaneamente afim da inocência e das forças descontroladas da terra» (p. 85). A alma e o corpo são um só, conclui. E o facto de nos termos elevado acima da brutalidade não impede que à brutalidade possamos descer novamente.

Escrito para o Rascunho.

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