quarta-feira, 13 de maio de 2009

UM RIO DE CONTOS

 


O RIO LETES
 
   Uma alma perdida vagueava junto às margens do rio Letes. Vagueava sem direcção, como qualquer coisa que vagueia, indagando-se sobre o local onde desaguaria aquele rio. Talvez pensasse ser esse local um lugar paradisíaco, um lugar de que lhe haviam falado na sua última encarnação. Pensava que a foz do rio do esquecimento só poderia ser um lugar paradisíaco, uma espécie de mundo prometido, vazio e silencioso, um lugar sem tempo, onde já nada poderia ferir as suas memórias cansadas. Olhou-se, rojando as vistas dos pés ao peito, temendo a nudez que o momento lhe impunha. Esta alma vadia sentia-se ainda escrava do medo e da solidão, infernos aos quais Deus a condenara desde o momento da criação. No entanto, começava a sentir-se desnudada por uma evidência: era cada vez mais de uma memória quase vazia. Digo quase vazia apenas porque se sentia ainda espinhada pela solidão, estorvada pela vergonha e agonizada pelo medo.
   Subitamente sentiu-se vigiada. Parecia haver algo ou alguém a medir todos os seus passos, todos os seus gestos e movimentos. Talvez se tratasse de uma última prova a que Deus pretendia submetê-la antes de a lançar na foz do rio Letes.
   Subiu uma duna que caía sobre uma das margens do rio. Havia esperança nos seus passos, embora não houvesse firmeza. Arrastava-se lentamente, desafiando as últimas energias. Ao aproximar-se do topo da duna, apercebera-se de uma sensação estranha que logo a atentou. Começou a captar um som diferente, um som semelhante ao da areia quando varrida pelo vento. O céu movimentava-se com mais intensidade, o sol projectava-se num imenso lençol azul formando aveludadas riscas de cores inefáveis. O céu, ou algo que com ele se confundia, parecia barafustar.
   Chegou, afincou os pés na areia, agarrou-se aos sentimentos, eram tudo o que tinha, insuflou os pulmões com imagens e sentiu-se uma sombra escravizada pelo pasmo. Eis a foz do rio Letes, disse. O céu, destino de todas as almas, já não era o seu fim. O seu fim era uma orgia de azul repleto de uma luz ofuscante que a lançava no mais alto nível de felicidade. O seu céu era o mar, um imenso mar.
   Estancada no cume de uma encosta, gozando o horizonte que unia o céu prometido a este outro, mais revoltoso e, talvez por isso, mais convincente, pensou deixar-se cair. Pensou deixar-se cair directamente nesse mar em que desaguavam todas as dores, todas as memórias, todo o cansaço. Ela queria apenas um banho de esquecimento, um mergulho no silêncio e na paz desse lugar prometido.
   Havia uma emancipação perturbadora em tudo quanto a rodeava. Apenas ela aprecia submissa. Morta? Viva? Não, apenas perdida. A sua perdição era tão transparente quanto a luz caída sobre as águas do esquecimento. Pensava em tudo o que a trouxera àquele lugar, ao encontro final e, porventura esclarecedor, com o fim, Perante o mar insubmisso, perante aquele abismo a um mesmo tempo terrífico e consolador, sentia-se verdadeiramente feliz. Sentia-se parte do todo e a ele pretendia entregar-se para sempre. Mas poderia o fundo daquele mar ser tão belo quanto a paisagem à superfície? Poderia o esquecimento ser tão belo quanto a visão do esquecimento? Era um facto que o mar a enlevava. Não lhe bastaria tal enlevo?
   Tentou recordar o momento em que nascera. Procurou-o dentro de si. Deixou o olhar tombar sobre o abismo, reparou que o abismo mergulhava nas profundezas daquele mar imenso e, enquanto o seu olhar desabava à porfia com as veementes vagas espumadas, pensamentos contraditórios preencheram-na por dentro. Ia deixar-se cair para o outro lado do mundo, mas o mar despontava em si forças nunca sentidas, vontades nunca antes ensaiadas, dores, paradoxos, contradições. Que mar seria aquele que a fazia sentir-se tão desencontrada? Que mar era aquele onde desaguava o rio do esquecimento?
   Tentou recordar o momento em que nascera. Ajoelhou-se defronte ao mar. Descobriu-se completa e, num rompante, mergulhou no abismo. A esperança transformara-se em desespero, o desespero transformara-se em coragem. Projectou-se no ar. Durante a queda pareceu ver-se reflectida nas ondas indisciplinadas e desobedientes. Talvez tudo não passasse de uma ilusão, talvez um sinal ou uma projecção, ou, afinal, talvez tão-somente o desejo de voltar a ver-se como se fosse um corpo.
   Queria voltar a sentir tudo como dantes, quando era mulher, quando fora homem, bicho, caule, raiz, ser. Foi então que um pequeno ser alado surgiu diante si, interrompendo a queda com um gorjeio fino mas absoluto. O ser alado, tão pequeno e tão frágil, amparando-lhe a queda como um cheiro, uma imagem, um som que nos ampara quando parecemos irremediavelmente derruídos na memória.
   Lágrimas surdiram-lhe das rugas, movimentos disformes insultaram a normalidade, mãos deformaram mosaicos de retratos, pernas e braços disputaram o ar, esteiras de luz trespassaram os olhos, formaram halos luzentes que, num crescendo de humidade, revelaram nichos de tragédia. Novamente a terra, novamente a carne, os sentidos, todos os sentidos, novamente o corpo, desperto, iluminado, como alguém que sai de um coma. A alma vadia encarnara naquele pequeno ser alado a voar sobre as águas insubmissas e revoltosas de um mar que não podia senão ser a memória, oceano onde vão desaguar as águas do esquecimento.
   Bateu asas, imagens irromperam perenes no seu mundo. Talvez o único paraíso possível estivesse naquele espelhar de substâncias onde lágrimas se tocavam porque, verdades se cantem, ao nascer todos choram e ao chorar todos renascem. Talvez a imagem primacial estivesse ali, nesse pequenito ser alado em que, inadvertidamente, voltara a ser corpo, um corpo que esquece e que lembra para enfim ser.
 
7 de Fevereiro de 2008.
 
Henrique Manuel Bento Fialho, in “Um Rio de Contos”, Antologia Luso-Brasileira, organização de Celina Veiga de Oliveira e Victor Oliveira Mateus, prefácio de francisco Nunes Correia e posfácio de Lauro Moreira, Editorial Tágide, Maio de 2009, pp. 92-94.
 
Contos de Adelice da Silveira Barros, Aldyr Garcia Schlee, Alexandre Andrade, Alexandre Bonafim, Ana Costa Ribeiro, Ana Cristina Alves, Ana Paula Cabral, Ana Zanatti, Andrea Del Fuego, António José de Moura, António Vilela, Aurea Domenech, Carlos Nejar, Catarina Fosneca, David Oscar Vaz, Diana Almeida, Dimíter Ángelov, Fernando Dacosta, Filipa Leal, Flávia Savary, Flávio Moreira da Costa, Guilherme Trindade, Henrique Levy, Henrique Manuel Bento Fialho, Hugo Santos, Inês Vinagre, Irene Zaide, Jane Tutikian, João Aguiar, João de Mancelos, João Anzanello Carrascoza, João Luís Nabo, Jorge Reis-Sá, Jorge Vaz Nande, José Henrique Calazans, Liliana Silva Ribeiro, Luiz Ruffato, Marcelo Puglia, Margarida Vale de Gato, Maria Augusta Silva, Maria do Sameiro Barroso, Maria Lucília Meleiro, Maria Teresa Horta, Mariana Ianelli, Miguel Real, Moacyr Godoy Moreira, Moacyr Scliar, Monique Revillion Dinato, Olga Savary, Pedro Sena-Lino, Rita Taborda Duarte, Rogério Rola, Rosa Lobato de Faria, Rui Zink, Rute Beirante, Sérgio Faraco, Teolinda Gersão, Tércia Montenegro, Teresa Ferreira de Almeida, Teresa Rita Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, Victor Oliveira Mateus.

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