Os bons livros ficam-nos muitas vezes na memória por pouco mais que uma frase, uma imagem, uma personagem. Ao terminarmos um livro podemos aferir da sua qualidade pensando no que ele nos ofereceu para uma melhor compreensão do passado e no que ele possa ter de exemplar para o futuro, mesmo que a matéria memorável fique armazenada de uma forma tão subliminar que por vezes se torne difícil distinguir o que de facto estava escrito daquilo que nós lemos. Os livros muito bons conseguem formar-nos o panorama, colocam-nos no centro de paisagens marcantes, atiram-nos para o interior de labirintos de ideias e de sentimentos diversos. Duvido que depois de ler Platero e Eu alguém possa olhar para um burro da mesma forma que olhava antes de ter lido o livro de Juan Ramón Jiménez. E quem pode continuar a ver nos porcos meros porcos depois de ter lido A Quinta dos Animais? Firmin – Adventures of a Metropolitan Lowlife no original – é um desses livros muito bons que guardaremos para sempre, com o qual apetece envelhecer pedindo conselhos a… uma ratazana.
A breve nota biográfica numa das badanas da edição portuguesa – Planeta, Janeiro de 2009 – deixou-nos expectantes. Sam Savage (n. 1940) é o tipo de pessoa com quem julgamos poder ter algo a aprender acerca da vida, algo que não passe exclusivamente pelo saber acumulado nas páginas dos livros. Nasceu na Carolina do Sul, doutorou-se em Filosofia, abandonou a vida académica, sobreviveu como mecânico de bicicletas, carpinteiro, pescador, entre outras actividades do género. O seu primeiro e, que eu saiba, único livro é precisamente este Firmin, a história da última ratazana de uma ninhada de 13 que uma progenitora alcoólica com apenas 12 mamilos deu ao mundo. Desde logo, fica-nos a ideia de uma história de sobrevivência. Nenhum moralismo bacoco a perturbar-nos a desconfiança. O franzino Firmin sobrevive, como a maioria dos mortais, à custa de sobras e de alguns milagres acidentais a que vulgarmente chamamos de sorte. Mas a sobrevivência deste rato com inclinações filosóficas não pode ser interpretada exclusivamente no plano material. Firmin é uma magnífica fábula da sobrevivência nos campos minados da vida metropolitana, mas de uma sobrevivência absoluta, material, moral, sentimental, humana.
Em termos de representações simbólicas, diria que toda a humanidade pode ser reduzida ao processo de destruição e «renovação» que envolve a Scollay Square. A decadência da Pembroke Books, livraria onde Firmin resolve fazer vida lendo tudo o que havia para ler, permite-nos intuir na existência desta admirável criatura velhas inquietações existenciais e sociais que aqui aparecem retratadas numa espécie de balança que faz equilibrar ironia e desespero. O desassossego de Sam Savage é o de todos aqueles que às tantas olham para a realidade e querem acreditar que o que estão ver não passa de ficção. «Se uma educação literária serve para alguma coisa, é para nos fornecer um sentido de fatalidade» (p. 41). Este sentido de fatalidade não impede o sonho, antes o torna necessário; este sentido de calamidade tornar-nos-á, certamente, mais ambivalentes, mas resulta numa incondicional revalorização da existência. O problema surge quando a necessidade do sonho parece impossível de satisfazer. Aí, o sentido de fatalidade torna-se fatal, o pavor que passamos a ter do mundo volta-se contra nós, transforma-se rapidamente num incontrolável pavor de nós próprios e afasta-nos dos espelhos – os outros? – como o diabo da cruz.
Firmin é uma ratazana obstinada, não desiste de uma relação de amizade com um ser humano. Conseguindo concretizar tal aspiração tão idiota, não despreza a consciência das limitações que tornam o facto numa pálida realização do que ambicionava. Afinal, para Jerry Magoon, o escritor marginal que adopta Firmin, este nunca passará de um animal engraçado. «O amor não correspondido é mau, mas o amor impossível de ser correspondido dá cabo de nós» (p. 64). Para lá das múltiplas referências, do tom culto que tinge a narrativa, para lá da ironia permanente e de uma implacável auto-depreciação que nos afecta amiúde como lanças imaginárias vindas do fundo dos nossos mais íntimos recalcamentos, a história de Firmin é não só a história de um náufrago sobrevivente mas também a história de um anjo da guarda, de um desses anjos da guarda que nos acompanham em profunda solidão e conseguem mudar a nossa vida sem alimentarem grandes fantasias quanto a amores impossíveis de ser correspondidos. A poesia deste Firmin é, de facto, para comer. Mas como quem alimenta os sonhos comendo a própria solidão.
A breve nota biográfica numa das badanas da edição portuguesa – Planeta, Janeiro de 2009 – deixou-nos expectantes. Sam Savage (n. 1940) é o tipo de pessoa com quem julgamos poder ter algo a aprender acerca da vida, algo que não passe exclusivamente pelo saber acumulado nas páginas dos livros. Nasceu na Carolina do Sul, doutorou-se em Filosofia, abandonou a vida académica, sobreviveu como mecânico de bicicletas, carpinteiro, pescador, entre outras actividades do género. O seu primeiro e, que eu saiba, único livro é precisamente este Firmin, a história da última ratazana de uma ninhada de 13 que uma progenitora alcoólica com apenas 12 mamilos deu ao mundo. Desde logo, fica-nos a ideia de uma história de sobrevivência. Nenhum moralismo bacoco a perturbar-nos a desconfiança. O franzino Firmin sobrevive, como a maioria dos mortais, à custa de sobras e de alguns milagres acidentais a que vulgarmente chamamos de sorte. Mas a sobrevivência deste rato com inclinações filosóficas não pode ser interpretada exclusivamente no plano material. Firmin é uma magnífica fábula da sobrevivência nos campos minados da vida metropolitana, mas de uma sobrevivência absoluta, material, moral, sentimental, humana.
Em termos de representações simbólicas, diria que toda a humanidade pode ser reduzida ao processo de destruição e «renovação» que envolve a Scollay Square. A decadência da Pembroke Books, livraria onde Firmin resolve fazer vida lendo tudo o que havia para ler, permite-nos intuir na existência desta admirável criatura velhas inquietações existenciais e sociais que aqui aparecem retratadas numa espécie de balança que faz equilibrar ironia e desespero. O desassossego de Sam Savage é o de todos aqueles que às tantas olham para a realidade e querem acreditar que o que estão ver não passa de ficção. «Se uma educação literária serve para alguma coisa, é para nos fornecer um sentido de fatalidade» (p. 41). Este sentido de fatalidade não impede o sonho, antes o torna necessário; este sentido de calamidade tornar-nos-á, certamente, mais ambivalentes, mas resulta numa incondicional revalorização da existência. O problema surge quando a necessidade do sonho parece impossível de satisfazer. Aí, o sentido de fatalidade torna-se fatal, o pavor que passamos a ter do mundo volta-se contra nós, transforma-se rapidamente num incontrolável pavor de nós próprios e afasta-nos dos espelhos – os outros? – como o diabo da cruz.
Firmin é uma ratazana obstinada, não desiste de uma relação de amizade com um ser humano. Conseguindo concretizar tal aspiração tão idiota, não despreza a consciência das limitações que tornam o facto numa pálida realização do que ambicionava. Afinal, para Jerry Magoon, o escritor marginal que adopta Firmin, este nunca passará de um animal engraçado. «O amor não correspondido é mau, mas o amor impossível de ser correspondido dá cabo de nós» (p. 64). Para lá das múltiplas referências, do tom culto que tinge a narrativa, para lá da ironia permanente e de uma implacável auto-depreciação que nos afecta amiúde como lanças imaginárias vindas do fundo dos nossos mais íntimos recalcamentos, a história de Firmin é não só a história de um náufrago sobrevivente mas também a história de um anjo da guarda, de um desses anjos da guarda que nos acompanham em profunda solidão e conseguem mudar a nossa vida sem alimentarem grandes fantasias quanto a amores impossíveis de ser correspondidos. A poesia deste Firmin é, de facto, para comer. Mas como quem alimenta os sonhos comendo a própria solidão.
Escrito para o Rascunho.
1 comentário:
Este texto apara mais incisivos do que a Rolha do Rei. Consumido quatro anos e picos depois com um muito obrigada.
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