sexta-feira, 3 de julho de 2009

ÉTICA A NICÓMACO

Não é fácil determinar as razões dessa espécie de imortalidade que consolida na História certas ideias, formas de pensar, reflexões e seus respectivos autores. No Ocidente diz-se que a filosofia nasceu na Grécia Antiga. Justa ou injustamente, este lugar comum vai fazendo escola e é difícil desmontá-lo junto de quem se convenceu de que antes de Sócrates o que havia era mito e poesia. Platão (428 a.C. – 347 a.C.), o mestre, quis expulsar da República (ideal) essa terrível contaminação do espírito que era a poesia; Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.), o discípulo, preferiu escrever uma (desprezada) Poética fazendo o que toda a vida fez: sistematizar. Mas o espírito sistematizador do Estagirita só é devidamente compreendido quando nele observamos uma vontade de aplicação prática. Ora, temos precisamente aqui o princípio da grande empresa aristotélica: levar o ideal à acção; ou, pelo menos, encontrar as condições que permitam pôr em prática o dogma. Para nosso mal, a herança aristotélica acabou por servir as estruturas morais ulteriores. Em nenhuma obra do filósofo grego se nota tão bem tal inspiração como na Ética que terá escrito para o seu filho Nicómaco.

Nesta edição da Ética a Nicómaco (Quetzal, Junho de 2009), traduzida, prefaciada e anotada por António de Castro Caeiro, voltamos a ter a oportunidade de sentir um primeiro esforço na formação moral do Humano. Ao longo de dez livros, Aristóteles estabelece aquilo a que chama o Supremo Bem, questionando-se sobre o tipo de vida que pode aproximar o homem desse fim. Rapidamente o supremo bem é identificado com a felicidade, opondo-se esta ao mero prazer por nem sempre os prazeres propiciarem a vida feliz e encontrar-se a felicidade «entre as coisas de valor inestimável e completas». De resto, conclui o filósofo, nunca ninguém escolhe a felicidade em vista da honra e do prazer e todos escolhem o prazer e a honra em vista da felicidade. É fácil notar que o alvo de Aristóteles não é diferente do de Platão: o corpo, esse lugar de devassidão onde os desejos e as paixões afastam o homem da vida contemplativa. Michel Meyer sintetizou com notável perspicácia o tipo de pensamento moral que acabou por predominar no Ocidente a partir destas doutrinas iniciais: «Com o cristianismo, as paixões que, com Aristóteles, podíamos negociar e, com Cícero, curar, tornam-se o signo do mal radical, em suma, o pecado» (in O Filósofo e as Paixões).

Como ler hoje esta tradição moral que desde cedo assentou numa desconfiança do prazer e numa perspectiva negativa das paixões, tanto quanto procurou elogiar o autodomínio e promover a vida contemplativa? Na Ética a Nicómaco encontramos uma economia das paixões, uma topologia do carácter, uma tipificação dos sentimentos e das atitudes que subjazem às acções. Encontramos exemplos de negociação moral que muitas vezes parecem reduzir as relações entre os homens a um comércio de bons sentimentos, a um deve e haver de boas acções. Também é curioso que o intuito pedagógico da obra não evite a recorrência aos exemplos dos poetas e aos mitos, tal como sucedia em Platão, para justificar conclusões formuladas na base do pressentimento e de premissas supostamente de acordo com uma lei divina que jamais poderá ter estado ao alcance dos humanos (mesmo dos sábios, fossem eles Gregos ou Troianos). Só há, pois, uma forma de ler hoje esta e outras obras como esta: procurando entender criticamente o que nelas falhou enquanto modelos.

Parece ter falhado, desde logo, a fé numa possibilidade de matematização do caos que é a vivência humana. Podemos partir do princípio de que os homens são educáveis, mas informa a prática que é pouco aconselhável reduzir as possibilidades do Humano a meia dúzia de supostas virtudes/excelências e de supostos vícios/perversões que se opõem numa lógica nada linear no campo da acção. É verdade que Aristóteles não nega essas possibilidades, mas a obsessão com um «sentido orientador» – «a justiça correctiva é o meio termo entre os extremos perda e ganho» (p. 125) – acaba por descambar numa espécie de «sociedade comercial das relações humanas» cujo resultado serão generalizações ainda hoje bastante discutíveis. Não sabemos, por exemplo, se «praticar adultério está sempre absolutamente errado» (p.57), se «todo aquele que ficou cego por causa de uma bebedeira ou de uma outra qualquer devassidão deve ser repreendido» (p. 77), se «aquele que visa sempre obter prazer e ajudar a criar uma boa disposição sem mais nenhum outro motivo é obsequioso» (p. 111), se «quem se suicida atenta de algum modo contra a própria honra, porque comete uma injustiça contra o Estado» (p. 142), se «ao amarem o amigo, [os homens de bem] amam o seu próprio bem» (p. 205), etc, etc, etc.

Poderão os exemplos ser meramente circunstanciais, datados e apenas legíveis à luz da época em que foram escritos. No entanto, estamos a falar dos pressupostos de uma moral ainda hoje reinante, da pretensão de uma ética definidora das boas acções e legitimadora da censura, dos castigos e das multas que ao longo de séculos violentaram e ainda violentam muitos seres humanos. Estamos a falar de uma ética que instaurou a tão útil noção de perdão e abriu caminho para as ideias da cura moral, vendo um doente em todos aqueles que se desviassem, por excesso ou defeito, das estipuladas excelências da alma humana e de uma ideia de felicidade enquanto forma de contemplação. Estamos a falar dos pilares da nossa civilização, a qual deve repensar os seus fundamentos a partir não somente do que eles aparentam ser mas também do que eles tornaram possível. É preciso aceitar que há muitos preconceitos nestas obras que já não nos deviam merecer a reverência que ainda hoje merecem. E é preciso ler estas obras para entender isso.

Escrito para o Rascunho.

1 comentário:

Marta disse...

ainda bem que as suas letras estão de volta